Nos cerca de dois anos de vivência no mato da Guiné-Bissau, tenho a ideia que não consegui, na verdadeira acepção da palavra, apreciar, no dia-a-dia, o que me rodeava. Muito pouco sabia das gentes e da sua terra: o verdadeiro sentimento da vida……no país ocupado; dos seus usos e costumes; do seu trabalho; das suas culturas, da riqueza da fauna e da flora, do convívio inter-racial, etc.
Um dia, recordo, na tabanca da “minha” lavadeira, enquanto almoçávamos , no conjunto familiar estava uma mulher que nunca antes avistara, fixando bem a minha face, a dado passo perguntou a razão de ser da nossa presença no país. Estamos aqui para vos defender, disse convicto. Com lágrimas nos olhos, não me pareceu satisfeita com a resposta. Fiquei incomodado. Mais tarde vim a saber que era professora primária em Bissau, muito mais tarde a perceber a atitude.
Pela contra partida do lavar e engomar a minha roupa, era costume “partilhar” (para além do pagamento em dinheiro) com esta família, géneros alimentícios fundamentalmente arroz. Não raras vezes fui convidado a almoçar, sendo o único a quem era distribuido colher. Os demais levavam a comida à boca em forma de “rolo de bacalhau”.
Também recordo o místico pôr-do-sol e noites, ora breu, ora luar, o “assustador” silêncio quando os pássaros se calavam, o clima, quente e húmido. As chuvas torrenciais, os relâmpagos e os trovões em simultâneo; as temperaturas muito elevadas durante todo o ano, proporcionando momentos de rara beleza mas também, por vezes, de medo e mal-estar.
Com a estação das chuvas existia uma maior proliferação dos mosquitos, formigas e outros insectos. Que actuando em forma de “Kamikases”, os mosquitos atacavam-me na cara e nos braços, sobretudo nos pés. Ainda hoje tenho visíveis manchas, sequelas de tanto coçar. A vida no quarto não passava sem mosquiteiro e de essêncio ➂ para os matar. Mas se eu matava uns, outros apareciam “esfomeados” atacando em massa. Felizmente não fui afectado pelo paludismo, como alguns (poucos) camaradas que vieram a ser evacuados para Lisboa.
- O mosquito é o principal causador do paludismo, pelas doenças diarréicas e as infecções respiratórias agudas. Ainda hoje é a principal causa de mortalidade hospitalar em todo o país. As crianças são geralmente as mais atingidas.
- Nas casas de banho, o essêncio era a prática de queimar papeis, caso contrário, ficaríamos com o rabo que mais parecia um passador de cozinha.
Outra frente inimiga eram as formigas, o seu tamanho era talvez 10/15 vezes mais a do tamanho das nossas neste país à beira mar plantado. Antes das chuvas esvoaçam aos milhares e o caminho era fugir. Quando no refeitório tinha que ter um segundo prato para as sacudir em estilo de abano, quando entravam nas nossas camisas ou se colavam ao nosso corpo suado, a mordidela era mesmo séria.
- Já com as baratas (enormes) tinha uma vida mais bem simpática. Cheguei a fazer algumas corridas, no quarto, com as do Justo que as alimentava a chouriço, quase sempre ganhava.
Tenho pena de não conhecer na plenitude a beleza daquele país. A Guiné, para muitos de nós, foi só Tite, pouco mais. Na verdade a nossa atenção estava virada para outras “frentes”. Foi, para muitos, um sonho mau de vinte e dois meses, para outros, infelizmente a própria vida.
Raul Pica Sinos
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