Aquele parte,
E todos,
Todos se vão,
Oh terra ficas sem homens,
que possam cortar o pão.
Zeca Afonso
Corria o mês de Março de 1967, no Centro Cripto do Quartel-general (QG), em Lisboa, entre três cabos e dois sargentos, quis o destino que fosse eu a decifrar a mensagem que ditava a minha mobilização para a Guiné, ficando incorporado no Batalhão de Artilharia 1914, composto por três Companhias Operacionais e uma de Comandos e Serviços, em trânsito no Regimento de Artilharia Costa (RAC), em Parede, Carcavelos.
Não me espantou! A situação era mais que previsível para os jovens militares da minha idade. Dou a notícia em casa à minha mãe, à namorada hoje minha mulher e companheira de sempre. Com o meu pai, na altura internado no Centro de Saúde do Telhal, despedi-me com um abraço e um beijo, sabendo eu que era incerto encontrá-lo de novo com vida, por mim, ou por ele tendo em conta a sua debilitada saúde, mas lúcido o suficiente para me encorajar contando episódios que passou na sua vida de militar.
Após o curto período de férias, a 7 de Abril de 1967, um dia antes do embarque, já no quartel em Parede, entre dezenas de militares, procuro o cripto Justo e conheço o furriel de transmissões de nome Cavaleiro. Aqui, além uma cara já conhecida. É-me indicado o Sargento a quem tenho que me apresentar. …Onde andou rapaz? ….não fez a instrução de aperfeiçoamento operacional (IAO), devia cá estar há um mês! Pergunte no QG….foi a minha resposta. Depois, foi arrumar na bagagem o camuflado distribuído e sair para jantar.
8 de Abril de 1967, cais de Alcântara em Lisboa, despeço-me da família que me acompanhou ao embarque, segue-se a formatura, um emproado oficial superior e sua comitiva fazem a revista da praxe, o embarque das tropas sucede-lhe. Ao som da fanfarra militar e do acenar dos lenços, o paquete Uíge largou amarras. A Torre de Belém fica para trás, a ponte sobre o Tejo já não se vê, a terra é coisa sumida, os olhos há muito que estão rasos de água.
Tive a sorte de não ser colocado nos lugares do navio que outrora eram destinados às cargas. O meu camarote suporta oito beliches duplos. Não tenho preferência da cama, uma qualquer serve para descansar. As refeições foram tomadas em refeitórios outrora salas de jantar para passageiros em terceira classe. Os lugares destinados às outras praças, os porões, (ao contrário dos oficiais e dos sargentos que seguiam em primeira e segunda classes respectivamente), eram degradantes. Colocadas ao comprimento dos porões, mesas de madeira que tinham lotação para uma vintena de militares, os beliches, também em madeira, acompanhava-os na altura. Os vomitados do enjoo eram constantes, a limpeza precária, que em conjunto com a falta do banho diário o cheiro era nauseante, asfixiante, o barulho dos motores, etc., o ambiente era insuportável.
Durante os oito dias (mais três que o normal por avaria num dos motores) que a viagem durou, foi neste contexto que os jovens militares fizeram a sua vida no navio. Inconformados com o destino, no convés, uns passeavam, outros conversavam e ainda outros jogavam ou viam jogar às cartas. Uma ou duas vezes fizemos exercícios de salvamento em caso de naufrágio. Os peixes voadores que quase sempre acompanharam o barco eram também motivo de entretenimento. Em 14 do mesmo mês, chegamos ao destino para o qual fomos obrigatoriamente mobilizados. O pior estava para vir……a guerra. Aqui o sofrimento a todos tocou!
Raul Pica Sinos
Sem comentários:
Enviar um comentário