Sonho_de_uma_noite_de_Natal« […] Como aquela fosse uma noite
muito santa e muito álgida – o Salvador ia nascer nas palhas para lembrar aos
homens que vêm do nada e para lá caminham – mãe e filha se deixaram ficar ao
lume, tão perto, que a chama do toro de carvalho, reatando-se de pois de
sopitar, alumiava mais que a candeia. A Mãe no seu luto de viúva, chaile (sic)
roto pelos ombros, mal tinha acabado de espiar a roca e cismava; a pequena, dez
anos espertinhos e medrados, com um pauzito ia atiçando o fogo, entretida a ver
dançar e rodopiar os mil fogaréus da combustão. De repente, quebrando o
devaneio, disse para a mãe:
− Porque é que uns são tão ricos e outros tão pobres?
− Porquê?… Fazes cada pergunta! Olha lá, os dedos da mão são
todos iguais?
− Ó mãe isso não quer dizer nada. Os dedos são desiguais,
não há dúvida, mas entendem-se todos muito bem uns com os outros. E que tem lá
que sejam desiguais se o sangue é o mesmo, pois não é?
A mãe não soube ou não quis contestar e ouviu-se lá fora o
tropel da rapaziada que preparava a fogueira do Natal naquela noite tão
luminosa que, não obstante a luz da candeia, uma réstia de luar atravessava o
telhado de telha vã e vinha bater no frontal como uma lança.
− Sabe, mãe, a Zezinha da Casa Grande chamou-me quando meti
o gado. Só queria que vomecê visse as coisas bonitas que lá tem. Uma riqueza! E
espera mais, muitas mais, que lhas há-de trazer o Pai Natal. Armaram um
pinheiro no meio da sala, com muita velinha, muita velinha e neve a fingir, só
para pendurarem as prendas. O Pai Natal vem de Lisboa e Paris, carregado,
carregadinho que não pode com mais às costas. É verdade, mãe, que quem o manda
é o Menino Jesus?
− É verdade. O Menino Jesus enche-lhe os taleigos e diz-lhe:
toca, vai levar…
− Mas ele só vai levar aos ricos? À nossa casa não vem?
− Não querias mais nada?! Ele só anda pelas casas fartas,
asseadas… muito branquinhas, e hão-de ter chaminé. Não sei se sabes, ele vem
pela chaminé.
−Também me disse a Zezinha que vinha pela chaminé. Por causa
disso pôs um sapatinho na pedra do fogão para começar logo por ali. Diz ela que
no sapatinho lhe há-de deixar uma prenda que não pode adivinhar o que seja, mas
que é a mais bonita e a mais cara de todas. Ó mãe, se eu pusesse a tamanca bem
estateladinha aqui à lareira, onde se visse, talvez ele me deixasse lá qualquer
coisa…
−Não vês que a casa não tem chaminé…
− O Pai Natal podia vir pelo telhado e levantar uma
telha…bater à porta…
−O Pai Natal não bate às portas. É como o vento. Bota-se a
caminho e, pronto, está logo chegadoç Se quisesse, entrava pelo buraco da
fechadura. Connosco pouco adiantava. A nossa porta nem chave tem. Basta o
cravelho, não há cá que roubar. Mas, como te digo, o Pai Natal do que mais
gosta é de descer pela chaminé. É para que saibam que vem do céu, à ordem do
Menino-Deus…
− Ó mãe, mande pôr uma chaminé na nossa casa, mande! Queria
tanto que o Pai Natal cá viesse…!
−Estás na lua. Uma chaminé é para quem é. Custa dinheiro.
Onde o tínhamos nós? […] »
Aquilino Ribeiro in Sonho de uma noite de Natal (Centro de Estudos
Aquilino Ribeiro, 2004: 8,9 e 10)
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