"RETRATOS DA VIDA PARA UM DIA OS NETOS RECORDAREM
(domingo, 15 de novembro de 2009)
O MENINO, OS MÉDICOS, O JARDINEIRO E O GAFANHOTO
Vamos deixá-lo aqui no parapeito da janela, disse o Sr. Joaquim. A lua quando chegar vai curá-lo e vais ver que, amanhã, quando te levantares e vieres espreitar o gafanhoto, ele já terá partido e, certamente a saltitar, pois foi curado pela lua por força do seu luar.
Já passaram, muitos, muitos anos. Tinha cerca de 6 anos,
quando fui atormentado por uma febre reumática, levando-me ao internamento,
durante 2 a 3 meses, no Hospital do Rêgo.
O mal principiou por fortes dores na garganta, febre muito
alta, grandes inchaços, não só na zona do pescoço mas por todo o corpo,
acompanhadas por dores nas articulações, sobretudo nos joelhos, que me
dificultavam no andar.
Minha mãe preocupadíssima consultou o médico no Centro
Social do Bairro, fornecendo-a de remédios, pois segundo o Sr. Dr., era uma
amigdalite comum e típica nas crianças em idade escolar e nos adolescentes, só
que, passados 3 dias, as maleitas e os inchaços no corpo, não apresentavam
sinais de abandono, pelo contrário, agravaram-se, assim como se agravaram as
dores, agora espalhadas por demais articulações.
Pobre mãe, de profissão servente de limpeza, quando se
apresentou ao serviço no Laboratório onde operava a Comissão Reguladora dos
Produtos Químicos e Farmacêuticos, situado no Calhariz de Benfica, chorava de
tristeza e de dor pelo infortúnio do seu menino.
As colegas, doutoras, ao saberem as causas de tal pranto, uma delas, a Dr.ª Maria de Lurdes de Vasconcelos, de imediato à fala com o marido que, era interno no Hospital do Rêgo, pede-lhe rápida consulta e, nas horas que se seguiram, o médico, já no Bairro, sentenciou e transportou o menino, com vistas ao seu internamento, de pronto, no hospital onde trabalhava.
O Hospital do Rêgo, fundado em 1904, hoje Hospital Curry
Cabral, estava (está) situado entre o Bairro Santos e as Av. Novas, paredes
meias com a estação ferroviária do Rêgo. É uma das mais antigas unidades
hospitalares do país, e sempre se distinguiu pela excelência do corpo clínico e
pelo seu elevado grau de humanização e perfil tecnológico.
As enfermarias, à época, eram térreas e rodeadas de jardins, sobretudo por canteiros arrelvados, bem tratados, aqui ali, neles plantadas roseiras e outras flores e ainda algumas árvores que me pareciam serem de frutos.
Internado com outros doentes com idades muito superiores à
minha, não podia, receber visitas dos meus familiares. As visitas só eram
feitas pela Dr.ª Vasconcelos e pelo marido, e este último, por força da sua
especialização naquele hospital para doenças infecto-contagiosas.
Tinha a oportunidade, de quando enquanto, pela janela da
enfermaria, aberta pelas manhãs, por um curto período de tempo, de ver ao
longe, para lá dos jardins, o acenar da minha mãe que, sorridente e feliz me
enviava, transportados pelo vento, beijinhos ora arremessados pelas suas lindas
mãos já enrugadas.
Dos poucos momentos que as janelas da enfermaria estavam
abertas, também podia, não todos os dias, ver e chegar à fala com o Sr.
Joaquim, o jardineiro e, acompanhar a sua arte no tratamento constante do
canteiro ajardinado que, ficava logo abaixo do parapeito da janela. Ele
respondia às minhas perguntas, sobretudo nos cuidados a ter com as roseiras,
pois no quintal da minha casa, lá no Bairro, minha mãe também as tinha
plantadas.
Num desses dias, quando no momento da faina do Sr. Joaquim,
não gostei de ver este meu novo amigo esborrachar um gafanhoto que se
alimentava, nas pétalas, numa das rosas. Eu adorava a bicharada e, era comum
transportar em caixas de fósforos vazias; lagartixas, cigarras, besouros,
gafanhotos e outros bicharocos que apanhava pelas árvores do bairro e mesmo
fazer deles, com a restante miudagem, trocas por “bilas” e tampas de caricas,
com vistas a engrossar o pequeno saco de pano que sempre me acompanhava nos
bolsos das calças.
O bom homem, ao aperceber-se da minha tristeza, procurou
desculpar-se, dizendo que não era sua intenção esborrachar o gafanhoto, mas sim
fechá-lo na mão para me oferecer, mas com medo que fugisse, se tinha
descontrolado na força ao apertá-lo. Acrescentando que não me preocupasse, pois
ele voltaria a saltar e a voar, explicando:
Vamos deixá-lo aqui no parapeito da janela. A lua quando
chegar vai curá-lo e vais ver que, amanhã quando te levantares e vieres
espreitar o gafanhoto, ele já terá partido e certamente a saltitar, pois será
curado pela lua por força do seu luar.
E assim foi. Pela manhã do dia seguinte constatei,
satisfeito, que o gafanhoto tinha “abalado” e provavelmente já “curado”. Nunca
mais vi, o Sr. Joaquim, a maltratar os bicharocos visitantes das suas flores,
nos lindos jardins do hospital, que tão bem zelava."
Texto de autoria do Pica Sinos, a quem agradecemos.
Raul Pica Sinos"
1 comentário:
Belo texto do Pica Sinos. O seu talento para a escrita está aqui bem expresso. Parabéns amigo. Um abraço. Leandro.
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