BISSASSEMA
Naquele tempo… estávamos já no dia 6 de Fevereiro, ainda em
território da Guiné/Bissau e os nossos companheiros tinham já nos pés quatro
dias de caminhada pelo mato, sempre a pé
e com pouco descanso. A incerteza, a angustia e o receio inundavam as suas
cabeças. Pensavam que de um momento para o outro podia aparecer alguém que lhes
desse um tiro .
Sempre atento, o Pica não descansou enquanto não se
encontrou com o Geraldino Contino. E é a conversa que ambos tiveram nesse encontro,
que aqui reproduzimos. É uma conversa dramática, real, contada na primeira
pessoa que agradecemos aos dois terem-na partilhado connosco.
Um abraço para ambos!
“AS MÃES SÃO IGUAIS EM TODO O MUNDO...
Na pequena, mas importante, vila do concelho de Almada que,
dá pelo nome de Trafaria, localizada na margem esquerda do rio Tejo, a cerca de
3 quilómetros da foz, vila onde estava situado o antigo quartel do BRT
(Batalhão de Reconhecimento das Transmissões) que incorporava o Centro de
Informações e Segurança Militar com vistas à formação, entre outras, da
especialidade em Operadores de Cripto, especialidade comum à época aos
protagonistas deste apontamento, foi o local escolhido para o almoço/encontro
de confraternização entre a minha pessoa (entre outros) e o ex-1.º Cabo
Geraldino Marques Contino.
Há anos que procurava este acontecimento, não só para matar
saudades, mas também para satisfazer curiosidades não só da minha pessoa, como
de muitos que viveram o drama, aquando da captura do entrevistado em Bissássema,
na região de Tite, em Guiné-Bissau, e nas prisões em Conacry. (**)
Recordo-me, em Tite, no Centro de Cripto, nos dias que
trabalhei com o nosso convidado, era comum vê-lo transportar um livro debaixo
do braço. Nos pequenos momentos de descanso, não deixava escapar duas ou três
linhas de leitura.
Havia dias que também gostava, como os demais, de se vestir
de forma despreocupada. Ainda hoje confessa que não sabe a razão porque foi
“brindado”, pelo ex-capitão miliciano Paraíso Pinto, com 5 dias de detenção,
justificados porque… o chapéu de palha e os sapatos de pala que trajava
(naquele dia), não conjugavam com o trono nu e com os calções do fardamento...
O ponto “quente” da nossa longa conversa, foi a sua captura
e a dos demais 2 companheiros (o Rosa e o Capitulo), em 2 de Fevereiro de 1968,
na operação que, dava, creio, pelo nome de “Velha Guarda”.
A Companhia de Artilharia [CART] 1743 a que pertenciam,
encetou a operação, em 31 de Janeiro de 1968, integrando num dos 3
destacamentos constituídos (um deles elementos da CCS), uma Companhia de
Milícias. O objectivo, era, na região de Bissássema, banhada pelo rio Geba, (na
sua frente a cidade de Bissau), aniquilar o IN, anulando o constante saque do
arroz e, o recrutamento dos jovens e das mulheres. Os primeiros para ingresso
nas suas fileiras e as segundas para servirem de carregadoras e cozinheiras dos
produtos pilhados. Consequentemente fixar elementos das NT na zona, não só com
vistas a proteger as populações, como conservá-las afectas.
Segundo conta o Contino, 2 dias após a chegada ao terreno,
pouco minutos a faltarem para a meia-noite, mais precisamente no dia 2 de
Fevereiro de 1968, (sexta-feira), um numeroso grupo IN, investiu em direcção ao
extenso e mal programado perímetro das nossas tropas, pelo lado do pelotão das
milícias. Estes não aguentando o ímpeto do ataque, acabaram por abandonar os
seus postos, permitindo abrir brechas na defesa do terreno e possibilitar o
cerco ao improvisado posto de comando.
A confusão surpreende as NT e, permite a captura dos
europeus [o Geraldino Marques Contino, o António Rosa e o Vitor Capítulo]
Acrescenta o meu convidado:
…nem mesmo a sua tentativa de se esconder de entre a manada
das vacas resultou…
Foram longos os dias e a distância efectuada a pé pelo mato.
Quando pelas tabancas passavam para descansarem ou
pernoitarem, eram sempre bem recebidos, em especial pelas “mulheres grandes” e
mães, que, ao vê-los feitos prisioneiros, não deixaram de lançar o seu olhar
misericordioso e de grande lamento, imaginando como seria o sofrimento das mães
brancas ao saberem que os seus filhos foram feitos prisioneiros.
…"As mães são iguais em todo o mundo!", remata o
camarada.
Julgo, conhecendo-o como o conheci no seu pequeno período de
permanência em Tite, a sua forma de estar, era de atitude ou algo diferente na
resposta à recepção dos naturais guineenses. Homem habituado aos usos e
costumes africanos, onde, desde os 3 anos de idade até aos 17 anos, viveu na
cidade de Luanda, em Angola, razão pela qual não se fez rogado em aceitar, por
uma ou outra vez, dançar e mesmo consentir o cumprimento dispensado por algumas
bajudas (, mulheres em idade de casamento).
Conclui, dizendo que até à fronteira de Conacry foi sempre,
como os seus camaradas, muito bem tratado, em especial pelo seu captor.
Os inimigos nunca souberam das suas especialidades e
patentes, inclusive teve o cuidado, durante a “viagem”, sem disso se
aperceberem [os seus captores], de comer o pequeno livro de cifra que na
ocasião transportava.
Já em Conacry, na prisão estatal, tomava as refeições, como
os demais, no refeitório, na presença dos elementos da direcção do PAIGC.
Diferente quando mudado para a prisão de prisioneiros de guerra e políticos.
Aqui as refeições não primavam pela qualidade, mas comiam exactamente o mesmo
que os seus carcereiros.
De tempos a tempos … lá vinha uma manga ou uma papaia…
Ofertas de agradecimento dos guardas carcereiros que, sendo analfabetos, lhes
pediam para escrever as cartas às famílias e ou suas namoradas.
De resto a maior parte do tempo era passado a jogar às
cartas, com baralhos construídos por si, em aproveitamento do papel de que eram
feitas as pequenas caixas de fósforos.
O Contino, depois de 30 anos de trabalho, como quadro
superior na TAP, já está reformado.
Raul Pica Sinos
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