Com nostalgia revi várias vezes as fotos do Cavaleiro onde está o saudoso furriel Rato. Há pessoas com o quase divino dom de criar empatias logo aos primeiros contactos.
O Rato era um homem com quem facilmente se sentia simpatia e com quem apetecia conversar.
Era a antítese de alguns, poucos, mas ilustres desconhecidos, que se viam com umas divisas e a dar ordens, e logo lhes provocava um tremendo inchaço no pequenino ego!
Anteriormente neste Blog, já contei uma história sobre um desses cromos, numa cena com o Pica Sinos, que reflecte bem a mentalidade atávica, de alguns indivíduos da classe de sargentos. Eles aperceberam-se “que elas não trazem nome” frase corrente no quartel.
Grande verdade, e que passado pouco tempo de Guiné, sentiriam na pele com o primeiro e forte ataque que sofremos.
Das muitas coisas que me fizeram odiar a “tropa” e as regras militaristas, era sem dúvida: o avaliar a pessoa pelo primeiro olhar directo aos ombros...a outra; o ser tratado por “tu” por marmanjos que nunca tinha visto na vida...nem conhecia de lado nenhum.
Como isso mexia comigo !! Já findo o tormento da farda, curiosamente, mesmo colegas com quem trabalhei durante anos, não logo tratava e mesmo detestava que me tratassem por “tu”, até, claro, que a admiração e amizade, a isso levassem. Provavelmente reflexo dos tristes anos de tratamento cavalar e suplício militar.
Meu irmão era da Força Aérea e este hábito do “tu” e “meu este, meu aquele” não se praticava. Esses termos caricatos “avis rara” não existiam, e ao que penso, só eram utilizados no exército.
O furriel Rato era moderado, mas alegre, de fino trato e um camaradão nas pequenas farras que durante os dias que estivemos no quartel da Parede fazia-mos antes de embarcarmos para a Guiné.
Já em Tite, eram longas as conversas de grupo, onde facilmente ele se incluía. acompanhou connosco num pequeno grupo que naturalmente se criou, sem sabermos bem como.
Eu o Pica Sinos, o furriel Bagulho e furriel Rato e mais uns poucos que infelizmente não recordo, sempre que podia-mos dar uma escapadela, lá rumávamos a um café na baixa da Parede, para umas conversas e claro uns petiscos bem regados, para fazer esquecer o que breve nos esperava.
Lembro que num desses dias, as conversas estavam um pouco tristonhas, talvez pela proximidade do embarque, e das saudades que já começavam a doer.
O Rato fixou-se num fado da fadista, então muito em voga, a Ada de Castro, que tocava na velha Jukebox.
Qual presságio..., muito calado, ouvia o fado super concentrado, findo o disco, levantou-se e meteu nova moeda e de novo ouvimos o fado. Repetiu-se esta cena várias vezes, e por estranho que pareça, e quase contra natura, ninguém comentou, pois quase todos éramos de Lisboa, e para nós, fado era coisa que não entrava !!
Ninguém se insurgiu e todos ouvimos as vezes que se repetiram os versos tristes daquela “despedida”, sem um comentário. O furriel Rato tinha os olhos lacrimejantes, e continuava muito calado e pensativo.
Parece que algo no seu íntimo fazia adivinhar o seu prematuro e infeliz desaparecimento na Guiné. Faleceu poucos dias depois de ter regressado de um mês de férias na Metrópole.
Recordo ainda hoje aquele fado da Ada de Castro...e a tal premunição que o Rato parecia sentir!!
Todas as mortes dos nossos amigos foram dolorosas, mas para mim, a deste companheiro de armas, fez-me doer muito, e deixou-me muitas saudades.
A sua simpatia natural e simplicidade ficaram na memória de muitos de nós.
Estarei em pensamento com os camaradas que NO PRÓXIMO SÁBADO DIA 23 DE MARÇO, irão deslocar-se á sua campa no cemitério da MARINHA GRANDE e colocar uma placa, símbolo das recordações ainda vivas que deixou. (os interessados devem contactar o Victor Barros).
Dos vários livros sobre a Guerra do Ultramar, numas páginas com fundo negro, onde constam os nomes dos milhares de mortos da guerra, lá encontrei o do nosso amigo.
De pouco consolo servirá para os familiares e amigos que o recordam, mas pelo menos, o seu nome está perpetuado no Monumento aos Mortos da Guerra em Belém.
José Justo
4 comentários:
Guedes
Nem sabes a alegria que me deste companheiro.
O que tenho tentado lembrar-me do fado que tanto tocou o nosso furriel Rato, e no fim a todos nós presentes naquela tarde na Parede.
Desde o ano passado que fiz várias buscas, e não sei como nunca "tropecei" com esta composição da Ada de Castro, que era mesmo dirigida aos que partiam para as lonjuras da Guerra de àfrica.
Foi com emoção que ouvindo a letra me transportei para aqueles tempos de partidas, e para nem todos, de regressos, com abraços e muitas saudades.
A idade torna-nos piegas, mas eu não me importo nadinha com epítetos.
Afinal as lágrimas lavam a alma.
Que saudades deste nosso amigo e companheiro, que connosco ainda sofreu alguns sustos!
Um abraço para ti
Li com muita atenção esta "história" aqui tão bem relatada, que ocorre precisamente num momento muito perto da partida para a Guiné e..., quando cheguei ao fim...., senti um arrepio....!!!!
Este fado de Ada de Castro (cuja letra é toda ela dedicada aos que partiam para o Ultramar), apesar de ser triste, é um fado muito bonito e que eu já não ouvia há quase 40 anos e por isso gostei aqui de o recordar....!!!
Sem dúvida alguma que é uma letra que fala dos dolorosos momentos da partida e para quem estava de saída certamente que se sentia com o coração dilacerado...., mas ao mesmo tempo, deixava também uma réstea de esperança, porque afinal fazia igualmente referência aos felizes momentos do regresso...!!!
No entanto este jovem que, nesse dia, repetidamente ouviu este fado, para ele houve apenas a tristeza da despedida....!!!!
A felicidade do regresso, escapou-lhe....!!!! Infelizmente......
O Rato, tal como o Cardoso, eram pessoas com quem se podia conversar, com quem era agradavel beber um copo.
Alguém disse um dia que "os bons partem..." e na verdade, no caso destes dois amigos, assim foi. Com a diferença de mês e meio.
Partiram os bons!
Obrigado Justo por este belo texto.
Amigos, se alguém tirar, gostaria depois de ver uma foto da campa do nosso amigo.
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