O Geraldino Marques Contino, à esquerda, com os seus dois filhos, e a esposa Luísa
INTRODUÇÃO
Publicamos este trabalho do Furriel Milº Jorge Alves Araújo, com a devida vénia ao próprio e ao Blog de Luis Graça & Camaradas, das Op. Especiais/Ranger, da CART 3404, de l971/1974 - Xime-Mansambo.
A primeira parte deste pequeno trabalho de investigação,
partilhada recentemente neste espaço colectivo (*), inicia-se com as
consequências do ataque à Tabanca de Bissássema, situada nos arredores de Tite,
em 3 de Fevereiro de 1968, que antes já tinha sido uma base IN.
"Os Diabos"
Do ataque da madrugada desse dia, sábado, resultou terem
ficado prisioneiros de guerra três militares de um Gr Comb da CART 1743
(1967/69), «Os Diabos», que tinha recebido a missão de aí se instalar e onde
decorria já a construção de abrigos enquadrados na organização do seu sistema
de defesa.
Corolário desse ataque continuado, intercalado entre maior e
menor intensidade, alguns guerrilheiros entraram no aquartelamento, lançando
granadas e apanhando à mão o António Rosa, o Victor Capítulo e o Geraldino Contino,
os quais foram levados para território da Guiné-Conacri.
Primeiro atravessando a pé o corredor de Guileje (cerca de
200 km em 6 dias), seguindo depois até
Boké em viatura. Aí chegam à fala com Nino Vieira (1939-2009), e depois
dirigem-se a Conacri onde são recebidos por Amílcar Cabral (1924-1973). Segue-se nova viagem até à “Casa Forte de
Kindia”.
Local onde foram aprisionados os elementos da CART 1743 (Bissassema)
Itinerário que os prisioneiros percorreram desde a fronteira Guiné Bissau/Guiné Conakry até à prisão de Kindia, na Guiné Conakry
Treze meses depois, em 3 de Março de 1969, António Rosa com
mais dois prisioneiros de guerra, António Lobato e José Vaz, levam à prática um
plano de fuga pensado entre si, sendo recapturados ao fim de seis dias. Na
sequência dessa evasão mal sucedida foram transferidos para um novo cativeiro
em Conacri [vidé P2095 e P7929]. [Infogravura nº 1, reproduzida acima[,
Após o diálogo estabelecido com os três militares da CART
1743, em Conacri, Amílcar Cabral dá conta em comunicado escrito em francês,
datado de 19 de Fevereiro de 1968, da identificação destes novos prisioneiros
de guerra.
Exactamente seis meses depois do episódio da Tabanca de
Bissássema, ou seja, em 3 de Agosto de 1968, Amílcar Cabral faz aos microfones
da «Rádio Libertação», a sua emissora, nova referência aos prisioneiros de
guerra do PAIGC. Por deferência deste, as palavras do seu secretário-geral
foram gravadas em fita magnética, bem como as declarações de oito militares
portugueses feitos prisioneiros nos primeiros seis meses desse ano, e
retransmitidas em Argel, na rádio «A Voz da Liberdade», emissora da
FPLN/Portugal [Frente Patriótica de Libertação Nacional]. O conjunto desses
oito depoimentos foram editados no Caderno 1, da responsabilidade da FPLN, com
o título “falam os portugueses prisioneiros de guerra” [vidé P16172].
[Infogravura nº 2]
Citação:
(1968), "Guiné 1 - Falam os portugueses prisioneiros de
guerra", CasaComum.org, Disponível HTTP:
http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_84394 (2017-10-30)
Nesse caderno 1, na página 20, encontrámos os testemunhos de
Geraldino Marques Contino, com respostas dadas a sete perguntas, conforme se
reproduz abaixo. De relevar que das sete perguntas duas estão relacionadas com
a comunicação com a família, depreendendo-se que seria para lhes dar conta da
sua [nova] situação. Por exemplo, a 4.ª, “Você já escreveu à sua família)”; R:
“Escrever ainda não escrevi, mas escreverei brevemente”; e a última, “Você vai
escrever-lhes [aos pais]?”; R: Vou escrever-lhes, naturalmente”. Como se pode
observar, o seu apelido está mal escrito [Contino e n não Coutinho}.
[Infogravura nº 3]
Infogravura nº 3
Fonte: Casa Comum; Fundação Mário Soares.
Pasta: 04309.007.011.
Título: Guiné 1 - Falam os portugueses prisioneiros de
guerra.
Assunto: Editado pela FPLN/Portugal, em Alger, exemplar 1 de
publicação com declarações dos militares portugueses feitos prisioneiros pelo
PAIGC. Pretende-se dar conhecimento da verdade às famílias, ao mesmo tempo que
se acusa o governo português de os referir como desaparecidos (militares das
incorporações de 1966). Este número inclui transcrição de uma comunicação de
Amílcar Cabral, Secretário-Geral do PAIGC, aos microfones de “A Voz da
Liberdade”, dirigida aos prisioneiros portugueses, no dia 3 de Agosto de 1968,
com a promessa de fornecer em breve fitas magnéticas com testemunhos dos
prisioneiros, bem como o tratamento que lhes é dado, quando feridos e ligação
com a Cruz Vermelha Internacional, para o seu repatriamento para junto das suas
famílias.
Data: 1968. Observações: Declarações gravadas em fita
magnética e difundidas pela Rádio Libertação, pelo PAIGC, que autorizou
retransmissão pela emissora da FPLN, a Voz da Liberdade. Fundo: Arquivo Mário
Pinto de Andrade.
Tipo Documental: Documentos
[com a devida vénia].
Neste contexto, não é possível confirmar o que quer que seja
quanto ao envio de “notícias para a metrópole”, como então se dizia. Só o
próprio nos pode/poderá fazê-lo. Certamente que não foi nada fácil dizê-lo, e a
existir algum atraso, ele seria perfeitamente compreensível, por necessidade de
encontrar as palavras acertadas e estabelecer um fio condutor que não provocasse
danos, nos dois sentidos. Por um lado aos destinatários, que nada sabiam acerca
da nova realidade, por outro ao próprio remetente que estava “obrigado” e/ou
“comprometido” em dizer-lhes a verdade. Mas, ao pensar referi-la, é aceitável
que se tenha questionado, muitas vezes, sobre as consequências que esta notícia
teria no seu seio? Como é que ela seria recebida? Aumentando a angústia e a dor
nos seus pares ou desenvolvendo esforços no sentido de encontrar canais de
comunicação alternativos? Provavelmente ambas as situações.
2. A IGREJA NA VIDA DOS PRISIONEIROS DE GUERRA (II) - O CASO
DE GERALDINO MARQUES CONTINO
Geraldino Marques Contino, o ex-1.º Cabo Op.Crpt da CART
1743, feito prisioneiro naquele sábado, dia 3 de Fevereiro de 1968, na tabanca
de Bissássema, certamente que passou pelas mesmas emoções, angústias, privações
e sofrimentos relatados pelos seus camaradas de infortúnio, o António Rosa e o
Victor Capítulo, desde que foi capturado, depois na prisão de Kindia, onde
cinco dias após aí ter dado entrada completou o seu 23º aniversário (em 15 de
Fevereiro) e, por último, na de Conacri.
Como referimos anteriormente, foi na busca de informações
sobre a sua vida em cativeiro que tomámos em mãos essa tarefa, existindo uma só
fonte onde poderíamos obtê-las, isto é «Do outro lado do combate». E a consulta
recaiu, uma vez mais, no espólio da Casa Comum – Fundação Mário Soares, onde
encontramos várias referências, umas já publicitadas acima, outras relacionadas
com a troca de correspondência entre os responsáveis da Igreja Católica e
Amílcar Cabral, na qualidade de secretário-geral do PAIGC.
E a causa/efeito para esse contacto nasce da falta de
notícias do Geraldino Contino, o qual deixou de escrever aos seus familiares,
em particular para os seus pais, depois do mês de Janeiro de 1970, muito
provavelmente por volta do dia em que completava o seu 25º aniversário (o 3.º
em cativeiro), data considerada para si e para os seus de muito importante. A
ausência de liberdade, o permanente controlo dos seus movimentos, e a cada vez
menor motivação para a escrita, levaram-no a cortar com o mundo exterior. Será
que foi isso que aconteceu? Ou terão as cartas, também elas, ficado retidas/
prisioneiras?
Uma vez que a ausência de notícias se manteve durante alguns
meses, os pais do Geraldino Contino tomam a iniciativa de escrever para o
Vaticano, dando conta a Sua Santidade o Papa Paulo VI (1897-1978) da sua
angústia por desconhecimento do destino do seu filho, feito prisioneiro pelo
PAIGC. O Santo-Padre interessa-se por este caso e remete, em 10 de Setembro de
1970, uma carta dirigida ao Arcebispo de Conacri, Raymond-Marie Tchidimbo (1920-2011),
solicitando informações concretas sobre a situação desse jovem militar. Este
religioso, por sua vez, cumprindo o superior desejo de Paulo VI, escreve em 16
do mesmo mês uma nova missiva de teor semelhante, enviando-a ao cuidado de
Amílcar Cabral, na qualidade de secretário-geral.
Recorda-se que estas duas cartas, escritas em francês,
constam da Parte I. (*)
A este contacto formal do Arcebispo de Conacri,
Raymond-Marie Tchidimbo, seguiu-se a resposta pronta de Amílcar Cabral, com
data de 17 de Setembro, cujo conteúdo daremos a conhecer de seguida, a tradução
e o original em francês, por esta ordem.
Tradução [de Jorge Araújo]:
Conacri, 17 de Setembro de 1970
Sua Excelência Monsenhor Raymond-Marie Tchidimbo, Arcebispo
de Conacri Monsenhor,
Tenho a honra de acusar a recepção da vossa carta de 16 de
Setembro, pela qual teve a gentileza de pedir para o pôr ao corrente sobre o
conteúdo de uma carta remetida pela Secretaria de Estado da Cidade do Vaticano,
por intermédio de Sua Excelência Monsenhor BENELLI, substituto desse mesmo
Ministério.
A direcção nacional do nosso Partido está honrada de poder
dar as seguintes informações acerca do prisioneiro de guerra Geraldino Marques
Contino de acordo com o interesse de Sua Santidade o Papa Paulo VI.
- Nome: Geraldino Marques Contino
- Filho de Armando Contino e de Olinda Marques
- Nasceu em 15 de Fevereiro de 1945 em Envendos [Mação,
Santarém]
- Profissão: estudante
- Situação na arma colonial: 1.º Cabo – RAL5
- N.º mecanográfico: 093526/66
- Feito prisioneiro em 3 de Fevereiro de 1968 em Bissássema
(Frente Sul) a 17 quilómetros de Bissau, a capital.
O prisioneiro encontra-se bem, tanto física como moralmente.
De acordo com os princípios humanitários da nossa luta, do respeito pela pessoa
humana e de nunca confundir colonialismo português e povo de Portugal ou
cidadãos portugueses, o melhor tratamento é concedido a este prisioneiro como a
todos os outros. Toda a sua correspondência é enviada, no tempo, para o seu
destinatário. É possível que o Governo português por necessidade da sua
propaganda contra a nossa luta legítima, não quer que as famílias dos
prisioneiros sejam informadas da situação na qual se encontram os seus filhos,
cônjuges e irmãos.
A carta anexa, escrita pela mão do prisioneiro, e endereçada
a seus pais, informará melhor que nós sobre a sua situação, a sua saúde e o seu
estado de espírito.
À vossa inteira disposição para todas as informações úteis,
por favor aceite, Monsenhor, a expressão dos nossos sentimentos de respeito e
fraternal amizade.
Pel’ O Secretariado Político do PAIGC
Amílcar Cabral, Secretário-Geral
Na volta do correio, o Arcebispo de Conacri, Raymond-Marie
Tchidimbo, acusa a recepção das informações enviadas por Amílcar Cabral, em
nova carta datada de 19 de Setembro, nos seguintes termos (primeiro a tradução,
depois o original constituído por duas folhas dactilografas):
Tradução [de Jorge Araújo]
Senhor Amílcar Cabral
Secretário-Geral do PAIGC
Conacri
Deixe-me dizer obrigado – um obrigado muito simples mas não
menos sincero – pela recepção dispensada à minha carta de 16 de Setembro e a
resposta, tão rápida e atenciosa, que se dignou trazer.
Gostaria de ser gentil o suficiente por ter sido o
interlocutor junto do Secretariado Político do PAIGC para o qual registo aqui a
expressão da minha gratidão.
O SANTO-PADRE será em breve informado, por intermédio de Sua
Excelência Monsenhor Substituto da Secretaria de Estado da Cidade do Vaticano,
- Monsenhor BENELLI – do conteúdo da sua carta; ao mesmo tempo que será
transmitida a relação de Geraldino Marques Contino a seus pais.
O seu gesto, Senhor Secretário-Geral, marca uma etapa
decisiva da vossa luta para conseguir, finalmente, libertar a sua Pátria de
toda a dominação; o Vaticano, singularmente atento às actividades dos
Movimentos de Libertação do mundo inteiro, não vai deixar de apreciar o
verdadeiro valor das intenções e dos esforços do PAIGC.
Queira aceitar, Senhor Secretário-Geral, com os meus
agradecimentos repetidos, a expressão do meu bem fraterno e respeitosa amizade.
Conacri, 19 de Setembro de 1970
Raymond-Marie TCHIDIMBO,
Arcebispo de Conacri
Fonte: Casa Comum; Fundação Mário Soares.
Pasta: 07069.111.023.
Assunto: Agradece a resposta à sua carta, em que dá conta da
situação do prisioneiro de guerra Geraldino Marques Contino.
Remetente: Monsenhor Raymond-Marie Tchidimbo, Arcebispo de
Conacri.
Destinatário: Amílcar Cabral, Secretário-Geral do PAIGC.
Data: Sábado, 19 de Setembro de 1970.
Observações: Doc. Incluído no dossier intitulado Relações
com a Guiné-Conacri / Senegal 1960-1970.
Fundo: DAC - Documentos Amílcar Cabral.
Tipo Documental: Correspondência.
Depois desta data nada mais foi encontrado relacionado com
este tema. Desconhece-se, por isso, as consequências destes contactos. O que se
sabe é que passados dois meses, naquele domingo, 22 de Novembro de 1970,
Geraldino Marques Contino e os restantes vinte e quatro militares portugueses,
prisioneiros de guerra em Conacri, às ordens do PAIGC, são libertados na sequência
da «Operação Mar Verde», planeada e conduzida pelo Comandante Alpoim Calvão
(1937-2014) [vidé postes P3244 e P1967].
Vinte e sete anos depois, numa iniciativa do semanário
«Expresso», foi possível reunir em Lisboa, dezasseis desses prisioneiros. Na
capa da «Revista do Expresso, n.º 1.309, de 29 de Novembro de 1997, é possível
identificar, com a seta amarela, o Geraldino Marques Contino, camarada que
esteve no centro deste trabalho de pesquisa [Infogravura nº 4]. O texto da
reportagem é da autoria do jornalista José Manuel Saraiva.
A foto abaixo é do Geraldino Marques Contino, publicada na Revista do
Expresso n.º 1309, de 29 de Novembro de 1997, com a devida vénia.
A escassos dias de completar quarenta e sete anos, em que
reconquistaram a liberdade na sequência da audaz «Operação Mar Verde»
[Guiné-Conacri, 22 de Novembro de 1970], e a vinte anos da primeira reunião
pública em grupo, em Lisboa, por iniciativa do Expresso, este trabalho é,
também, a minha homenagem a todos eles, uma aprendizagem pessoal e, ainda, uma
lembrança pelas duas efemérides.
Obrigado pela atenção.
Com um forte abraço de amizade… e muita saúde.
Jorge Araújo.
8NOV2017