Discurso, escrito,
do Presidente da República na Sessão Solene
Comemorativa do 47.º aniversário do 25 de Abril
25 de abril de 2021
"Senhor Presidente da Assembleia da República,
Senhor Primeiro-Ministro,
Senhora e Senhores Presidentes do Supremo Tribunal de Justiça, do Tribunal
Constitucional, do Supremo Tribunal Administrativo e do Tribunal de Contas,
Senhor Presidente António Ramalho Eanes,
Senhores membros do Governo,
Digníssimos convidados,
Senhoras e Senhores Deputados,
Portugueses,
Passaram, há um mês, sessenta anos sobre o início de um
tempo que haveria de anteceder e determinar a data de hoje, aquela que aqui
evocamos, 25 de Abril de 74.
Um tempo feito de vários tempos e modos que para sempre
marcou a vida de mais de um milhão de jovens saídos das suas terras para atravessarem
mares e viverem e morrerem noutro continente ou dele regressarem alguns com
traços indeléveis na sua saúde.
Que para sempre marcou a vida das suas famílias, dos seus
lugares, das suas aldeias, das suas vilas e mesmo das suas cidades, no fundo de
todo um Portugal durante treze anos ou um pouco mais.
Que para sempre marcou a vida daqueles que, por opção de
princípio, recusaram aquela partida e rumaram a outros destinos continuando ou
iniciando uma luta contra o que estava e queria permanecer.
Que para sempre marcou a vida dos que já lá vivendo idos
eles ou os seus antepassados de terras daquém mar de lá vieram, no termo desses
longos anos, ou lá ficaram e estão para ficar.
Que para sempre marcou a vida dos que viveram e morreram do
outro lado da trincheira para conquistarem o que alcançaram definitivamente
depois do 25 de Abril de 74.
Que para sempre marcou a vida de famílias, de lugares, de
aldeias, de vilas e mesmo de cidades de Pátrias afirmadas como Estados
independentes após treze anos ou um pouco mais de um tempo ainda não tão
vizinho de nós e todavia já tão longínquo para tantas gerações.
Que não foi um tempo desprendido de outros tempos. Foi o que
foi porque as décadas que o precederam, o século que o precedeu, os cinco
séculos que o precederam criaram ou prolongaram contextos que o haveriam de
definir e condicionar.
E por isso é tão difícil dir-se-ia até impossível explicar
qualquer que seja a visão de cada qual esses treze anos ou um pouco mais sem
falar do Portugal dos anos 20 aos anos 70; do Portugal do final do século XIX
aos anos 20; do Portugal dos vários pequenos ciclos de que se fizeram o Império
Colonial e as relações coloniais nele vividas.
Olhar com os olhos de hoje e tentar olhar com os olhos do
passado que as mais das vezes não nos é fácil entender sabendo que outros,
ainda, nos olharão no futuro de forma diversa dos nossos olhos de hoje.
Acreditando muitos, nos quais me incluo, que há no olhar de
hoje uma densidade personalista, isto é, isto é de respeito da dignidade da
pessoa humana e dos seus direitos, na condenação da escravatura e do
esclavagismo, na recusa do racismo e das demais xenofobias que se foi apurando
e enriquecendo, representando um avanço cultural e civilizacional irreversível.
Acreditando muitos, nos quais também me incluo, que o olhar
de hoje não era nas mais das vezes o olhar desses outros tempos.
O que obriga a uma missão ingrata: a de julgar o passado com
os olhos de hoje, sem exigir, nalgumas situações, aos que viveram esse passado
que pudessem antecipar valores ou o seu entendimento para nós agora tidos por
evidentes, intemporais e universais, sobretudo se não adotados nas sociedades
mais avançadas de então.
Se esta faina é ingrata para séculos remotos que não se
pense que ela é desprovida de dificuldades para tempos bem mais recentes.
Continua a ser complexo entendermos tantos olhares do fim do
século XIX quando os impérios esquartejaram a regra e esquadro o continente
africano ou do começo do século XX quando o império monárquico passou a império
republicanos
Mais óbvio é pelo contrário o juízo sobre o passado ainda
mais recente quando outros impérios terminaram e o império português retardou,
por décadas, o processo descolonizador recusando-se a ouvir conselhos da
História e apenas extinguindo o indigenato nos anos 60, ou seja, uma dúzia de
anos antes de 74.
Este revisitar da história aconselha algumas precauções. A
primeira é de não levarmos as consequências do olhar de hoje, sobre os olhares
de há 8,7,6,5,4,3, 2 séculos ao ponto de passarmos de um culto acrítico
triunfalista exclusivamente glorioso da nossa história, para uma demolição
global e igualmente acrítica de toda ela, mesmo que a que a vários títulos é
sublinhada noutras latitudes e longitudes.
Monarcas absolutos e portanto ditatoriais aos olhos de hoje,
e foram a maioria, seriam globalmente condenados independentemente do seu papel
na Fundação, na unificação territorial, na Restauração, na diplomacia europeia
intercontinental.
Com monarcas e governantes no liberalismo, que os houve,
prospetivos na história que fizeram ou refizeram no século XIX às vezes com a
singularidade improvável de um Príncipe Regente no Brasil, filho primogénito do
nosso Rei, que declarou a independência dessa potência do presente e do futuro
sendo o seu primeiro Imperador e vindo a lutar pela liberdade e a morrer em
Portugal, no mesmo quarto onde nascera trinta e cinco anos duas coroas e uma
independência antes. Ou personalidades do liberalismo republicano importantes
no centro ou na periferia do Império como Norton de Matos.
Segunda precaução: é de aprendermos a olhar, em particular
quanto ao passado mais imediato, com os olhos que não são os nossos, os do
antigo colonizador, mas os olhos dos antigos colonizados, tentando descobrir e
compreender, tanto quanto nos seja possível, como eles nos foram vendo e
julgando, e sofrendo, nomeadamente onde e quando as relações se tornaram mais
intensas e duradouras e delas pode haver o correspondente e impressivo
testemunho.
Terceira precaução: essa a mais sensível de todas por
respeitar a tempos muito, muito presentes nas nossas vidas. Aqueles de nós
portugueses que têm menos de 50 anos não conheceram o Império colonial nem nas
lonjuras nem na vivência, aqui, no centro. O seu juízo é naturalmente menos
emocional, menos apaixonado. Admito que assim não seja, porém, em muitos jovens
das sociedades que alcançaram a independência contra o Império Português e
viveram depois décadas conturbadas pelos reflexos de vária natureza da anterior
situação colonial.
Já para os portugueses com mais de 50 ou 55 anos o
revisitarem a infância ou a juventude é mais desafiante. É uma mistura de
recordações, de novos mundos descobertos, de desenraizamentos ou novos
enraizamentos, de primeira desertificação do interior do Continente, de
migrações e muitas mais imigrações, de transformações pessoais, familiares,
comunitárias, de mortes choradas, de sinais na saúde e na vida, de traumas os
mais diversos e em momentos diferentes por aquilo que sonharam e se fez, por
aquilo que sonharam e se desfez, pelo que sofreram e ficou, pelo que esperaram
aguentaram e sentem nunca ter tido reconhecimento bastante.
Para todos eles e muitos mais o juízo é tão complexo como
complexa foi a mudança histórica que neste dia evocamos, na sua abertura para a
Descolonização, para o Desenvolvimento, para a Liberdade, para a Democracia.
Desenvolvimento, Liberdade e Democracia, sabemo-lo todos, sempre foram
imperfeitos e por isso não plenos. Porque nunca tendo resolvido uma pobreza
estrutural de dois milhões de portugueses e desigualdades pessoais e
territoriais, e desinstitucionalizações, que aqui referi em 2016 e 2018, que a
pandemia veio revelar e acentuar.
Mas foi complexa essa mudança histórica em 74. Fruto da
resistência de muitas e muitos durante meio século com os seus seguidores
políticos sentados neste hemiciclo. Ela ganhou o seu tempo e o seu modo
decisivos no gesto essencial dos Capitães de Abril, aqui qualificadamente
representados pela Associação 25 de Abril e que saúdo, reconhecido, em nome de
todos os portugueses. Esses Capitães de Abril não vieram de outras galáxias,
nem de outras nações, nem surgiram num ápice naquela madrugada para fazerem
história. Transportavam consigo já a sua história, as suas comissões em África,
uma, duas, três, alguns quatro, anos seguidos nas nossas Forças Armadas, tendo
de optar todos os dias entre cumprir ou questionar, entre acreditar num futuro
querido ou que outros definiam ou não acreditar, entre aceitar ou a partir de
certo instante romper, tudo em situações em que a linha que separa o viver e
morrer é muito ténue apesar dos princípios, das regras, dos ditames escritos
por políticos e juristas em gabinetes, que não são os cenários em que a coragem
se soma à sobrevivência e à solidariedade na camaradagem. Pois foram estes
homens, eles mesmos, não outros, os heróis naquela madrugada do 25 de Abril.
Como haviam sido eles e muitos, muitos mais os combatentes
ano após ano nas longínquas fronteiras do Império. Como foram eles quem acabou
por aceitar para símbolos públicos face visível da mudança oficiais mais
antigos encimados pelos que haveriam de ser os dois primeiros Presidentes da
República na transição para a Democracia. Que não eram, não tinham sido
militares de alcatifa. Tinham sido grandes chefes militares no terreno e nele
responsáveis por anos de combate, de coordenação com serviços de informação e
de atuação anti guerrilha, de proximidade das populações.
Foi assim aquele dia 25 de Abril antes de suscitar o
Processo Popular Revolucionário que o seguiu e apoiou. Antes de ser hoje
património nacional em que o seu único soberano é o povo português.
Foi no seu eclodir resultado de décadas de resistência e
depois crucialmente grito de revolta de militares que tinham dado anos das suas
vidas à Pátria no campo de luta e que sentiam estar a combater sem futuro
político visível ou viável presididos eles, e todos nós, por dois Chefes
Militares um após outro que tinham conhecido intensa e prolongadamente o que é
a guerra de guerrilha em missões militares e cargos politico ou militares os
mais relevantes.
Eis por que razão é tão justo galardoar os Militares de
Abril tendo merecido já uma homenagem muito especial aquele, de entre eles, que
depois de ter estado no terreno veio a ser peça chave na mudança de regime e
primeiro Presidente da República eleito da democracia portuguesa, e que sempre
recusou o Marechalato que merecia e merece, o Presidente António Ramalho Eanes.
Eis também porque é tão difícil o juízo sobre uma história
tão recente salvo naquilo que é de mais óbvio consenso: o consenso naquilo em
que o Império não entendeu o tempo que o condenara. A ditadura não podia
entender o tempo que a tinha condenado de forma irrefragável e ainda mais
evidente a partir de 58 e da saga de Humberto Delgado e a relação colonial não
conseguira entender a raiz da inevitabilidade da sua inconsequência.
Estas reflexões são atuais porque nada como o 25 de Abril
para repensar o nosso passado quando o nosso presente ainda é tão duro e o
nosso futuro é tão urgente.
E ainda porque a cada passo pode ressurgir a tentação de
converter esse repensar do passado em argumento de mera movimentação tática ou
estratégica num tempo que ainda é será de crise na vida e na saúde e de crise
económica e social encaremos com lúcida serenidade o que pode agitar o
confronto político conjuntural, mas não corresponde ao que é prioritário para
os portugueses. E além de não ser prioritário nestes dias de crises é duvidoso
que o seja alguma vez.
É prioritário estudar o passado e nele dissecar tudo: o que
houve de bom e o que houve de mau. É prioritário assumir tudo, todo esse
passado, sem autojustificações ou autocontemplações globais indevidas, nem
autoflagelações globais excessivas.
E no caso do passado mais recente assumir a justiça
largamente por fazer ao mais de um milhão de portugueses que serviram pelas
armas o que entendiam ou lhes faziam entender constituir o interesse nacional.
Aos outros milhões que cá ou lá viveram a mesma odisseia. Aos milhões que lá e
cá a viveram do outro lado da história combatendo o Império colonial português
batendo-se pelas suas causas nacionais ou a viveram do mesmo lado, mas ficaram
esquecidos, abandonados por quem regressou e condenados por quem nunca lhes
perdoou o terem alinhado com o oponente.
Aos muitos, e eram quase um milhão, que chegaram
rigorosamente sem nada depois de terem projetado uma vida que era ou se tornou
impossível. Aos muitos, e eram milhões, que sofreram nas suas novas Pátrias
conflitos internos herdados da colonização ou dos termos da descolonização.
Até por respeito para com todas estas e a todos estes, que
se faça história e história da História, que se retire lições de uma e de outra
sem temores nem complexos, com a natural diversidade de juízos, própria da
democracia. Mas que se não transforme o que liberta, e toda a revisitação o
mais serena possível e liberta ou deve libertar em mera prisão de sentimentos,
úteis para campanhas de certos instantes, mas não úteis para a compreensão do
passado a pensar no presente e no futuro.
O 25 de Abril foi feito para libertar, sem esquecer nem
esconder, mas para libertar e os que o fizeram souberam superar muitas das suas
divisões durante a Revolução e depois dela a pensar na unidade essencial da
mesma Pátria tomando os termos simplificadores desses tempos sensibilidades
diferentes no Movimento das Forças Aramadas que se chocaram então não deixaram
de entender depois que a unidade essencial de uma rutura depois feita Revolução
ela própria composta de várias revoluções tudo o mais sobrepuja. Nações irmãs
na língua têm sabido encontrar-se connosco e nós com elas e têm sabido julgar
um percurso comum olhando para o futuro ultrapassando séculos de dominação
política, económica, social, cultural e humana.
Que os anos que faltam até ao meio século do 25 de Abril
sirvam a todos nós para trilharmos um tal caminho como a maioria dos
portugueses o tem feito nas décadas volvidas fazendo de cada dia um passo mais
no assumir as glórias que nos honram e os fracassos pelos quais nos
responsabilizamos, e bem assim no construir hoje coesões e inclusões e no
combater hoje intolerâncias pessoais ou sociais.
Quem vos apela a isso mesmo é o filho de um governante na
Ditadura e no Império, que viveu na que apelida de sua segunda Pátria o ocaso
tardio inexorável desse Império, e viveu depois, como constituinte, o arranque
do novo tempo democrática. Charneira como milhões de portugueses, entre duas
histórias da mesma História e nem por exercer a função que exerce olvida ou
apaga a história que testemunhou. Como nem por ter testemunhando essa história
deixou de ser eleito e reeleito pelos portugueses em democracia. Democracia que
ajudou a consagrar na Constituição que há 45 anos nos rege.
Que o 25 de Abril viva sempre, como gesto libertador e
refundador da história. Que saibamos fazer dessa nossa história lição de
presente e de futuro, sem álibis nem omissões, mas sem apoucamentos
injustificados querendo muito mais e muito melhor.
Não há, nunca houve um Portugal perfeito.
Como não há, nunca houve um Portugal condenado.
Houve, há e haverá sempre um só Portugal. Um Portugal que
amamos e nos orgulhamos para além dos seus claros e escuros também porque é
nosso.
Nós somos esse Portugal.
Viva o 25 de Abril!
Viva Portugal!
Marcelo Rebelo de Sousa"