"É um bocado real, não por ser China, mas
por ser longe. Variante da história contada por Eça.
No Bilhete VI, em Cartas Familiares e Bilhetes de Paris
(1907), vai Eça dissertando sobre violências da Natureza ou humanas, No Japão,
na China, na Índia, Arménia, Turquia, Grécia..., Espanha... «E enfim neste
Paris o dia doloroso em que a Ciência», etc, etc... «Mas eu não sei, meus
amigos, se estas desgraças realmente vos interessam, vos comovem -- porque a
distância actua sobre a emoção exactamente como actua sobre o som.» «Mas então
essa confraternidade humana -- pela sublime força da qual nada do que é humano
deve ser alheio ao homem? Não existe? Oh, certamente: -- mas para todo o homem,
mesmo o mais culto, a humanidade consiste essencialmente naquela porção de
homens que vivem no seu bairro. [...]» O insigne escritor vai dando exemplos...
e chega bem perto de nós. Diga cada um se o nosso interesse não aumenta! «Ah,
esta abominável influência da distância sobre o nosso imperfeito coração!
Bem recordo uma noite em que, numa vila de Portugal, uma
senhora lia, à luz do candeeiro, que dourava mais radiantemente os seus cabelos
já dourados, um jornal da tarde. Em torno da mesa, outras senhoras costuravam.
Espalhados pelas cadeiras e no divã, três ou quatro homens
fumavam, na doce indolência do tépido serão de Maio. E pelas janelas abertas
sobre o jardim entrava, com o sussurro das fontes, o aroma das roseiras. No
jornal que o criado trouxera e ela nos lia, abundavam as calamidades. Era uma
dessas semanas também em que pela violência da Natureza e pela cólera dos
homens se desencadeia o mal sobre a terra.
Ela lia as catástrofes, lentamente, com a serenidade que tão
bem convinha ao seu sereno e puro perfil latino. “Na ilha de Java, um terramoto
destruíra vinte aldeias, matara duas mil pessoas…” As agulhas atentas picavam
os estofos ligeiros; o fumo dos cigarros rolava docemente na aragem mansa; — e
ninguém comentou, sequer se interessou pela imensa desventura de Java. Java é
tão remota, tão vaga no mapa! Depois, mais perto, na Hungria, “um rio
trasbordara, destruindo vilas, searas, os homens e os gados…” Alguém murmurou,
através de um lânguido bocejo: “Que desgraça!”. A delicada senhora continuava,
sem curiosidade, muito calma, aureolada de ouro pela luz. Na Bélgica, numa
greve desesperada de operários que as tropas tinham atacado, houvera entre os
mortos quatro mulheres, duas criancinhas…
Então, aqui e além, na aconchegada sala, vozes já mais
interessadas exclamaram brandamente: “Que horror!... Estas greves!... Pobre
gente!...” De novo o bafo suave, vindo de entre as rosas, nos envolveu,
enquanto a nossa loura amiga percorria o jornal atulhado de males. E ela mesma
então teve um oh! de dolorida surpresa. No Sul da França, “junto à fronteira,
um trem descarrilado causara três mortes, onze ferimentos…” Uma curta emoção,
já sentida, já sincera, passou através de nós com aquela desgraça quase
próxima, na fronteira da nossa península, num comboio que desce a Portugal,
onde viajam portugueses… Todos lamentámos, com expressões já vivas, estendidos
nas poltronas, gozando a nossa segurança.
A leitora, tão cheia da graça, virou a página do jornal
doloroso, e procurava noutra coluna, com um sorriso que lhe voltara, claro e
sereno… E, de repente, solta um grito e leva as mãos à cabeça:
— Santo Deus!...
Todos nos erguemos num sobressalto. E ela, no seu espanto e
terror, balbuciando:
— Foi a Luísa Carneiro, da Bela-Vista… Esta manhã!
Desmanchou um pé!
Então a sala inteira se alvorotou num tumulto de surpresa e
desgosto.
As senhoras arremessaram a costura; os homens esqueceram
charutos e poltronas; e todos se debruçaram, reliam a notícia no jornal amargo,
se repastavam da dor que ela exalava!... A Luisinha Carneiro! Desmanchara um
pé! Já um criado correra, furiosamente, para a Bela-Vista, buscar notícias por
que ansiávamos. Sobre a mesa, aberto, batido da larga luz, o jornal parecia
todo negro, com aquela notícia que o enchia todo, o enegrecia.
Dois mil javaneses sepultados no terramoto, a Hungria
inundada, soldados matando crianças, um comboio esmigalhado numa ponte, fomes,
pestes e guerras, tudo desaparecera — era sombra ligeira e remota. Mas o pé
desmanchado da Luísa Carneiro esmagava os nossos corações… Pudera! Todos nós
conhecíamos a Luisinha — e ela morava adiante, no começo da Bela Vista, naquela
casa onde a grande mimosa se debruçava do muro dando à rua sombra e perfume.»
[Texto retirado de Cartas de Paris, 4.ª edição, Livros do
Brasil, Lisboa, fixação do texto e notas por Helena Cidade Moura, de acordo com
os textos da Gazeta de Notícias. Esta edição inclui Ecos de Paris (1905) e
Cartas Familiares e Bilhetes de Paris (1907)]"
José Luis Patricio
ex-alf. mil. - Guiné
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