Tens em troca
órfãos e órfãs
E campos de solidão
E mães que não têm filhos
Filhos que não têm pais·
(Zeca Afonso)
A tarde já vai alta.
Foi diferente a partida da Guiné. Desta vez não houve fanfarra e lenços a acenar. Apenas o soar da sirene do navio.
São menos os que partem naquela primeira segunda-feira do mês de Março de 1969. Não são os mesmos “meninos” de outrora, a guerra tornou-os homens e diferentes.
Ficam para trás as águas barrentas, o navio já vai distante. Na ânsia da partida não tive tempo para me despedir daquela terra de cor vermelha, do seu cheiro, das árvores centenárias, dos pássaros, das bolanhas, do seu magnífico pôr-do-sol, do silêncio das noites estreladas ou do medo quando da cor do breu, do seu povo. É um conjunto de imagens que a guerra e o tempo não conseguirão apagar.
Dos ausentes, em tempo, “Em nome da Pátria”, através de um qualquer oficial subalterno, naquela que foi sua morada, surge a notícia da morte. A família e os amigos choram para sempre a sua sorte. Também a guerra e o tempo não conseguirão apagar a imagem dos meus camaradas que tombaram com honra naquele chão que lhes era alheio.
Na partida, mas com a data de cinco meses antes, a mim, e aos demais que me acompanham, é-me entregue um “papel verde”, “O Comandante Militar atesta o seu apreço pelos serviços prestados á Pátria na Província da Guiné”. Aos que ficaram para a vida inteira mutilados, estropiados não sei se a “Pátria” também lhes atestou o seu apreço.
As mesas e beliches nos porões do Uíge, pelo seu uso, não se notam que são de madeira, negra é a sua cor. Ao contrário da ida, os vomitados do enjoo já não importam. A limpeza precária e a falta do banho diário, o barulho dos motores, pouco ou nada incómoda.
Repete-se a vida no convés.
Só nas conversas se observam excepções, são de contentamento e alegria.
Todos acordam cedo naquela manhã de 9 de Março, a brisa do mar gela-me a cara, os meus olhos já avistam a terra que me viu nascer. Uns choram, outros abraçam-se, procuro um lugar, como muitos, na amurada do navio.
Já vejo o Tejo e os “cacilheiros”. Todos estrategicamente se calam para após a passagem da ponte, dizerem em uníssono……JÁ PASSOU.
O navio prepara-se para atracar. Aqui, alem, vêm-se cartazes….Estou aqui Manuel…. Leiria. Esperamos por ti……. Família Santos Aqui…… Massarelos Presente.
Os gritos de alegria com o desembarque comovem. Mães, Pais, Filhos, Mulheres, Noivas, Amigos, todos se abraçam. A nuvem negra parece ter passado o e sofrimento acabado.
Quartel do RAL 1 nos Olivais. O aeroporto de Lisboa está por perto, entregamos o que resta dos fardamentos. Despeço-me dos meus camaradas com um até breve. Vou para casa onde a família me espera.
Reencontro o meu velho Bairro das Furnas. A guerra, essa, durou estupidamente mais cinco anos.
3 comentários:
Como todo o "regresso", também este é muito emocionante...., mas este não é um regresso qualquer....
A Chegada a Lisboa, pela forma como está descrita, adivinha-se envolta num turbilhão de sentimentos....
Foram muitos meses de afastamento, foi muito o sofrimento sentido e vivido...., mas foi com toda a certeza muito emocionante e gratificante para todos, esse "regresso", esse "encontro com o tempo passado"....
No entanto, e pese embora o facto da enorme tristeza por todos sentida durante os largos meses passados na Guiné,não deixa de ser interessante a forma como aqui é recordado tudo o que de belo existe no Continente Africano e que afinal os marcou a todos e por isso mesmo ainda hoje é lembrado...!!!
"......Na ânsia da partida não tive tempo para me despedir daquela terra de cor vermelha, do seu cheiro, das árvores centenárias, dos pássaros, das bolanhas, do seu magnífico pôr-do-sol, do silêncio das noites estreladas....."
Eis um quadro pintado com as côres e os aromas de África....!!!!
Na verdade esta crónica traz-nos à memória tudo aquilo que por nós passou durante a nossa permanência na Guiné.
Uns mais outros menos, todos vivemos algo semelhante ao que o Pica aqui descreve.
E como ele diz, na ansia de virmos embora, situação que já esperávamos há cerca de quatro ou cinco meses, todos nós não tivemos tempo para nos despedirmos daquela terra, daquela gente, que de certo modo, nos ensinou a ser homens.
Este é um documento histórico companheiro.
Abraços.
LG.
Este texto do Pica, fez-me recordar o nosso regresso e este pedaço do que escrevi em tempos:
...A partir de um ano de comissão, tudo começava a tornar-se muito mais penoso, e os medos aumentavam.
A constante tensão, a má e pobre alimentação do quartel, (eu e o Pica lá nos safava-mos, e éramos bastante faltosos às vitualhas regimentais no refeitório) o arrastar lento dos dias, a saturação das repetitivas conversas, tudo contribuía para o massacrar do corpo e da mente.
No regresso à Metrópole, findos os intermináveis dois anos de martírio, a bordo do navio Uige, ver no horizonte começar a desenhar-se a Ponte Sobre o Tejo...com os olhos repletos de lágrimas, que por falta de forças não chegaram as escorrer... ao sentir-me inteiro no magro corpo...então tive a certeza de estar a viver o dia mais feliz da minha vida.
Estas recordações, são para mim como a Paixão quando se apaga, dá lugar ao Amor e depois à sublimação da Ternura e da Veneração.
Tudo o que foi bom, fez no meu arquivo da memória, apagar os horrores da guerra...
Várias vezes me dispus a voltar a Tite, só com amigos ou com minha mulher.
A vida agitada e sempre super-ocupada profissionalmente, levou-me sempre a protelar e nunca o concretizar. Seria talvez a única viagem que faria com imenso gosto. Tenho pena !!...
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