Levantamento de rancho
Nova Sintra. Já aqui referida muitas vezes e sempre pelas razões piores. Chegámos a passar fome. E o trabalho era incessante. Andávamos todos mal nutridos e esgotados além de cheios de medo de que aquele fosse o nosso último dia. A comida era uma desgraça em qualidade –Já nem nos preocupava a qualidade – e em quantidade. Certo dia,, hora de almoçar, peguei na minha lata de Coca-Cola, à qual tinha sido retirada a tampa, e me dirigi para a improvisada cozinha onde o cabo cozinheiro fazia o melhor que podia e tinha e, nesse dia, perdi a razão. A minha lata vinha meia de água e tinha quatro feijões a nadar. E era o meu almoço, igual ao de todos, capitão incluído. Talvez para ele houvesse cinco ou seis feijões dentro do caldo. A taça, era também a lata de Coca-Cola. Danei-me. Fiz uma chinfrineira danada – por isso é que digo que me danei – e aconselhei os soldados a recusar comer.
Aí, entra em acção o segundo comandante, alferes Barros, engenheiro de profissão, homem muito sensato e que eu admirava pela sua cortesia e fair-play. Pegou-me no braço e tentou arrastar-me para longe dos soldados. Eu não aceitei e continuei a reclamar e a aconselhar o levantamento de rancho. Estava cheio de fome e aquilo não era comida suficiente para o resto do dia que se adivinhava muito trabalhoso e difícil.
Com uma calma que só o bom do alferes Barros, lá me fez acalmar e sugeriu-me que repetisse a dose, se ainda desse para repetir.
A custo, aceitei a sugestão dele mas entendia que era injusto eu poder repetir só porque tinha reclamado e, os restantes terem que ficar só pela dose de água e quatro feijões. E não repeti.
Interveio o capitão que me disse que podia acontecer eu ser preso pelo delito que estava a cometer e que devia dar bons exemplos, dada a minha posição de comandante de secção, etc. etc.
E assim ficou a minha rebelião que, afinal não chegou a servir para nada.
Algum tempo depois da nossa estada em Nova Sintra recebemos instruções para ir fazer segurança ao rio onde estava um batelão com carga para nós. Esse batelão transportava alimentos, munições, material para abrigos e... uma máquina de terraplanagem. Coisa inédita. Eu nem imaginava que pudesse haver uma coisa daquelas naquela terra. Mas havia e foi-nos entregue. Para que serve? Bem. Foi muito útil pois permitia em três tempos escavar um buraco com dois metros de profundidade, vinte de comprimento e mais de dois de largura. Se tivesse que ser aberto à mão era uma eternidade, a avaliar pelo esforço que despendemos nos primeiros dias em que tudo foi feito à mão.
Entretanto, um ataque que sofremos causou baixas em homens, equipamentos, abrigos e... na máquina. Esteve cerca de oito dias inoperacional. Penso que foi uma granada que lhe rebentou com um rodado. Finalmente, foi reparada. E agora, para que serve? O seu condutor levou-a para sul do quartel, numa zona de pouco mato e muito inclinada em direcção à mata onde havia o poço de abastecimento de água e vai de começar a fazer terraplanagens. É para a pista. Pista? Mas aquilo é tão inclinado. Como é que os aviões ali aterram e descolam? Mas a verdade é que foi mesmo para a pista. E eu fiquei a saber que as aterragens eram efectuadas com o avião virado para a parte que descia e a descolagem no sentido inverso, a subir. Como é possível que desenvolvam uma velocidade que permita a descolagem em terreno tão inclinado e consigam parar em inclinação a descer? Poi é. Mas era assim mesmo. E resultou.
Foi dessa pista que, mais tarde, foram evacuados, por avião, os feridos e o morto que eu relatei no episódio da mina que deixou um tronco sem pernas e sem braços.
Lá vou eu, de novo, a caminho de Nova Sintra, deste vez comboiar alguns militares da unidade lá aquartelada. Meus, eram para aí vinte homens. De Nova Sintra apenas quatro. Mas alguém havia de fazer segurança para que eles chegassem bem. Saímos de Tite pelas três horas, numa madrugada chuvosa e escura. Pedi ao Zé Carlos, o enfermeiro, que seguisse ao meu encalce. Sempre poderíamos falar se fosse preciso.
Desta vez não me fazia acompanhar de guia, pois que o caminho era já sobejamente conhecido, embora nunca trilhássemos o mesmo. Lá íamos seguindo perto da picada que já nos era familiar, umas vezes à direita, outras à esquerda.
Tínhamos passado Gatongó e informei, via rádio, que tudo seguia normal. A chuva era cada vez mais intensa, mas chuva civil não molha militares. A previsão de chegada era pelas oito horas e tinha combinado que um pelotão de Nova Sintra viria ao meu encontro logo que houvesse luz para nos podermos juntar sem problemas.
Após cerca de meia hora de buscas alguém tropeçou numa coisa que parecia ser um corpo. Sem luz não era fácil saber do que se tratava porque até podia ser um animal que tivesse, ao fugir de nós, ter pisado a mina. Fui verificar e após ter revirado o que restava, apurei que era uma cabeça presa a um tronco sem pernas e sem braços. Despi o meu blusão se embrulhei-o o melhor que pude, pedi a alguém que o carregasse e pedi ao Zé Carlos que o mantivesse vivo. A força aérea não evacuava mortos. A única maneira, disponível, era injectar CORAMINA e, sem saber, abreviámos-lhe a morte. Pobre dele. Já não sentia sequer que vivia. Nunca cheguei a saber quem era. Chegados a Nova Sintra, consegui convencer a enfermeira paraquedista a levá-lo no avião, como se ainda estivesse vivo. Ela não era trouxa mas compreendeu o meu problema que sabia que eu teria de carregá-lo, de regresso a Tite, o que só poderia acontecer no dia seguinte, durante a noite.
E assim se passou mais um episódio. Júlio Garcia, tu lembras-te muito bem. Comenta este episódio, tal como poderás comentar as restantes. Tu também os viveste. Só o Zé Carlos não pode por ter falecido pouco tempo após termos regressado a Portugal.
E lá me estive a conversar com os dois, falando de que? Já não sei. Mas não devia ser nada diferente do que cheirasse a guerra. Ou a mulheres, coisa que não víamos há muito.
O meu guia, soldado preto e natural da Guiné, passou por mim e informou-me que iria deitar-se Sugeri-lhe que se deitasse ao lado da minha arma que estava à entrada do abrigo pois que eu também não tardaria a ir. Havia muitos mosquitos e, ao menos deitado tinha a protecção da rede mosquiteira.
E foi então que começou o ataque que já mencionei e que fez um morto, o meu guia, e ferido todos os restantes, alguns com gravidade.
Mas não estou a recontar a história para encher espaço. Na verdade há nela algo de muito trágico e até hilariante, passados tantos anos.
Após cerca de meia hora a fazer fogo contínuo, o morteiro aqueceu tanto que o Machado gritou para o Meleiro. O cano está muito quente. Não o aguento. Mas o Meleiro, transmontano de Urrós, junto às margens do Douro, teve uma solução. Gritou-lhe que enrolasse a camisa ao cano. Isto resultou durante algum, muito pouco tempo. Depois o Machado voltou a gritar: Tenho que parar. Não suporto o cano em brasa.
MEIJA-LE, gritou o Meleiro.
Ora eu não sei se se escreve assim, embora tenha presente que se trata de uma forma do verbo mijar. Mas não importa para aqui a forma ou o conteúdo. O que importa é que o Machado descarregou a bexiga à volta do cano e assim pôde continuar de fazer fogo.
O resto da história já foi contado. É trágico demais para ser repetido.
Foi mesmo isso. Ainda não estávamos refeitos do desastre de Bissássema e já estávamos metidos a construir um quartel no meio do nada, no cruzamento do que teria sido Nova Sintra.
Esta foi ainda mais difícil que a anterior. Só sei que estava a fazer uma ronda pelos postos avançados quando fui alvo de um tiro de canhão que iniciou o grande ataque a Nova Sintra.
Esse tiro de canhão entrou no meu abrigo, matou o meu guia - eu estava fora - que sorte, e feriu toda a guarnição. Durante cerca de uma hora o fogo foi de uma intensidade que em Tite já havia quem rezasse por nós. No meio disto até ficámos sem comunicações porque o único rádio operacional foi destruído por uma bala de canhão que rebentou nas redondezas e ainda feriu o capitão.
Durante todo o ataque eu não ouvi resposta de fogo do meu abrigo. Só que não podia levantar a cabeça para ir lá. Quando, por fim lá cheguei tive um desabafo parecido com este. Aos berros gritei: Seus filhos da puta! Então ninguém faz fogo? o cabo Melo respondeu-me com voz sumida: estamos todos feridos, meu furriel. Entrei em pânico. E agora? Corri para o capitão a pedir ajuda médica e vi-o , com ar pensativo, um dedo na testa, a olhar para mim com cara de sofrimento. Fiquei furioso. Então este gajo está a pensar na morte da bezerra em vez de se agarrar ao rádio e pedir reforços e socorro? E disse-lhe: Meu capitão: Tenho um morto e o resto estão todos feridos. Respondeu-me com o dedo na testa; Também estou ferido. E tirou o dedo da testa e o sangue jorrava pelo buraco que estava por baixo.
Também foi um dos evacuados. Mas teve o cuidado de ser o último, por respeito para com os restantes feridos. Grande homem, este capitão, hoje coronel, grande amigo e alvo de sofrimentos familiares inenarráveis.
Depois deste ataque, seguiram-se muitos mais, de menos intensidade. Pouco haveria a realçar, não fosse a fome que passávamos. Até que fomos substituídos. Ainda lá voltei muitas vezes para guarnecer a unidade que nos substituiu e uma vez para comboiar pessoal de passagem por Tite com destino àquele inferno. Foi nessa ocasião que, durante a noite muito chuvosa, tive um morto e vários feridos numa mina. Falarei disso mais adiante.
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