"O Turra Maneta que cuida dos Tugas mortos no cemitério de Bissau. Tentou
devolver uma granada que lhe mandaram e acabou por perder uma mão. Mais de
quarenta anos depois, é ele quem cuida do cemitério onde estão enterrados os
antigos inimigos mortos em combate. Sabe algumas histórias dos soldados cujos
corpos foram deixados para trás, outras ficaram para sempre perdidas no tempo e
nas lápides que não levam nome"
Sim, um 'turra´ que perdeu a mão com uma granada toma conta
dos ‘tugas’ mortos na guerra colonial. Eis como chegámos até ele.
Foi com algum receio que ultrapassámos a porta do
Cemitério Municipal de Bissau para visitar os talhões dos militares
portugueses. Situa-se numa das zonas mais degradadas da cidade antiga. Na
Guiné há cerca de 30 locais onde existem corpos de soldados portugueses
mortos durante a guerra colonial. Alguns destes locais estarão ao abandono ou
já não se sabe a localização exata de certos corpos, como feridas que há
muito sararam e não deixaram cicatrizes. Há histórias escabrosas de campas
abertas, revoltas, profanadas pelo abandono e desinteresse de mais de quatro
décadas.
Entra-se e, como sempre, é o verde do mato que sobressai.
Fica-se a saber que há um responsável pelos três talhões de militares
portugueses mortos. Logo à entrada, junto a campas sem nome, deparámos com
duas placas de 2010 da Liga dos Antigos Combatentes, o que revelava ter havido
ali alguma preservação recente. Mas a verdade é que grande parte do
cemitério, lá para a zona do fundo, está destruído ou a ser “reciclado”,
isto é, reutilizado. Foi sempre um trauma não superado, uma história que
não resolvemos — a dos nossos mortos deixados para trás, soldados enterrados
nos quartéis que depois foram abandonados à pressa. Os familiares tinham que
pagar 11 contos para os trazer para a Metrópole. Era muito dinheiro.
Deambular pelo cemitério é sempre um passeio errático, no
meio de capim alto e mármore partido que se tem receio de pisar. Ao longe vem
um homem a passo largo. Ainda há uns três anos, Bissau era conhecida por ser
um local difícil para jornalistas. Não se conseguia trabalhar sem uma ou duas
autorizações escritas de diferentes entidades superiores. E uma notinha em
dinheiro para fazer o quer que fosse. Pois, isso acabou.
Aproxima-se aquele homem de cara fechada. Mão agarrada a um
braço que perdeu.
- É o responsável aqui pelo talhão dos militares
portugueses? (Abre-se um sorriso amigo.) - Sou sim senhor. Francisco Monteiro,
68 anos, antigo guerrilheiro do PAIGC, a pedido mostra o coto. Perdeu a mão em
1973, ao tentar devolver uma granada lançada pela tropa portuguesa. É ele o
cuidador dos seus “inimigos” mortos em combate. Não há ironia nem poesia
nisto. E, posso testemunhar, não há rancor. - A guerra foi trabalho de
Salazar, eles não tiveram culpa e ainda ficaram aqui.
Francisco Monteiro, antigo combatente do PAIGC, junto às campas de soldados portugueses
O ‘turra’ Francisco Monteiro, ananeta que cuida dos ‘tugas’ mortos dá uma volta
connosco pelos talhões. Há aproximadamente 480 campas. Francisco Monteiro
garante que no ano passado ainda foram trasladados para Portugal três e que
recebe visita de portugueses “meses sim, meses não”. Há campas não
identificadas, sabe as histórias de meia dúzia, nomeadamente de mortos de
finais dos anos 60, como a de três portugueses que morreram pela ação de um
morteiro e cuja campas aponta. E, como tantos ex-combatentes do PAIGC que
encontramos, Francisco Monteiro é um desencantado com o país de hoje e com o que
vive: “Não tenho nada. O povo não tem nada. A Guiné podia ter tudo.”
... Quando saímos do cemitério, demos uma nota ao 'turra'
maneta. Quando íamos a entrar no carro vimos que ele estava a entregar a nota
a uns tipos à porta do cemitério. Chamámos.
— Está a dar o dinheiro a outros? Porquê?
— Eles não têm
mesmo nada.
(Pode parecer um final feliz meio arranjado.
Mas foi mesmo assim que aconteceu. Demos-lhe outra nota. E
ele lá foi embora.)
(Expresso, parte de um
artigo de Jornalista Luis Pedro Nunes, Fotógrafo Alfredo Cunha, 29-09-2015, com
a devida vénia).
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