" O REBOUTA
Muito
alto e magro, embora dotado de boa constituição física, o Rebouta era um
soldado natural de Felgar, arredores de Moncorvo. Tinha necessidade de mostrar
que queria ser amigo de todos e esforçava-se por merecer a amizade de todos.
Mas era um amigo e eu agora que o diga, passados mais de trinta anos. Tinha
como missão municiar o morteiro que o Machado apontava com precisão e grande
mestria. O Machado, rapaz forte e bem constituído, natural de Larinho, também
de Moncorvo, ficou feliz por ter arranjado para municiador do seu morteiro um
homem seu conterrâneo, com quem viera a fazer grande e duradoira amizade que
ainda hoje perdura. Ambos eram mestres no que faziam e eu sabia que não
precisava de preocupar-me em dar-lhes instruções. Tiro do Machado, era tiro que
acertava. Granadas dentro do tubo nunca faltavam ao seu jeito porque o Rebouta
estava sempre atento às necessidades do seu apontador e sabia o momento ideal
para deixar cair a granada.
Assim
foi até ao dia 7 de junho – os mês dos Santos- só que do ano seguinte, 1969,
portanto. Era perto do meio-dia e o sol tinha raiado depois de uma valente
trovoada acompanhada de chuva intensa, daquela que abre rios onde antes era
monte. O cheiro da terra e tão doce. O calor já não era como durante os meses
de verão, inverno em Portugal. Eu estava de serviço ao piquete e tinha, entre outras
preocupações e tarefas, a de garantir que a pista de aterragem estivesse
desminada e a protecção de qualquer avião que quisesse ali aterrar. O dornier encarnado sobrevoou o quartel e
encaminhou-se para a pista de terra batida, ainda fresca da chuva mas sem
poeira e lá vou eu, de jipe, correndo para me certificar de que todos os
procedimentos de segurança estavam activados para a aterragem. Estávamos já em
FULACUNDA, povoação que encimava o nosso quartel onde tínhamos chegado quase um
ano antes. A sua população civil era de maioria Fula e gente boa era o que não faltava. Os soldados regalavam-se,
nas sua folgas a deitar-se pela tabanca, onde houvesse uma bajuda de mama
firmada que os retivesse.
A
picada que passava pelo meio da povoação até a pista estava muito esburacada e
a chuva que tinha caído ainda ajudara à sua deterioração. Eu cavalgava aquele
jipe sem dó, pois que não era meu e sabia que o meu amigo Almeida me ia
desculpar por qualquer estrago que lhe provocasse. Logo que pude aumentei a velocidade
e corri para o abrigo junto da porta de entrada da pista, donde verifiquei que
a segurança estava feita e vi o avião iniciar a descida. Logo que parou, guiei
até debaixo da sua asa e ajudei a abrir a porta do pequeno avião. Espanto meu.
Ri-me de contentamento. Gritei até. O Rebouta estava de volta, com um saco de
lona diferente dos que nos tinham sido dados antes. Sinal de progresso na
Manutenção. Abraço-o. Ajudo-o a descer do avião e, já no chão, vi que ele
coxeava. Abracei-o novamente e perguntei-lhe o que ele estava ali a fazer.
Voltei para a companhia! Ele também estava contente por me voltar a ver. Mas
estava também muito triste por não ter conseguido libertar-se da tropa. Ainda
por cima, mandaram-no para o mato. Quando um homem não tem sorte, furriel, nada
há a fazer. Trouxe-o para o quartel e fui com ele até à presença do capitão
Neves. Pedi-lhe que desse um impedimento fácil ao Rebouta que, afinal, apenas
tinha sido objecto de operação plástica ao calcanhar, com aplicação de prótese
e aí andava ele sem poder calçar botas. Coitado de quem tem azar ou não tem
padrinhos. E assim foi decidido, com a anuência do alferes Pio, meu comandante
de pelotão, que aceitou que o Rebouta passasse o resto da comissão como
ajudante de cozinheiro. Finda a comissão, regressou a Portugal, emigrou para
França onde trabalhou como pedreiro até que as dores lho permitiram. Quando já
mais não podia, regressou definitivamente a Portugal, criou os filhos com uma
esmerada educação e aguarda há seis anos que o estado português lhe faça a
justiça de lhe dar uma pensão que o ajude a comer a sopita até ao fim dos seus
dias. Ditosa Pátria que tanto demora a reconhecer a dívida que tem para com os
seus heróis.
Joaquim Caldeira - CCAÇ 2314"
Sem comentários:
Enviar um comentário