"A Chegada
As bagagens estavam já amontoadas junto ao portaló
do convés superior na ânsia de nos libertamos daquela confusão que nos minava o
espírito. Será que a saída estava para breve? Ainda fomos passar a última
revista ao local onde dormimos durante nove dias na esperança de que algo nos
tivesse esquecido arrumar no saco ou mala onde guardámos as nossas poucas
coisas. Afinal, muito poucas. Tudo se resumia a duas mudas de roupa, tres
equipamentos de farda e aos objectos de higiene pessoal. Tudo muito pouco
porque o peso era factor determinante para o sucesso das nossas andanças.
Aqui estava eu, agora, cheio
de tácticas e psicologias aplicadas, dotado de todas as qualidades de
comandante e secção e desejoso de por em prática a minha autoridade e o meu
saber.
A
angústia continuou a apoderar-se de todos e era já visível no rosto de cada um
o ar de sofrimento pelo que a seguir se passaria. De repente, não me lembro já
como, ouvi dizer que o nosso destino era Tite. Onde fica? Como será? O sargento
Faria esteve lá na comissão anterior, ouvi comentar ao Alves. Corri para o
Faria a fim de obter informações. Homem habituado a estas andanças, o Faria
sorriu com a sua cara de maduro – teria já perto de quarenta anos- e disse: é
um lugar como os outros. Vai ver que será fácil. Que bom ter ouvido este homem
cheio de saber, grande amigo do amigo e excelente jogador de tudo. Onde
houvesse jogo, haveria um Faria risonho e bem disposto a passar o seu bocado de
tempo e até, porque não, ganhar alguma coisa aos incautos aprendizes de jogo.
Lembro-me de um dia ele me dizer que, enquanto nós pudéramos estudar para obter
alguma formação académica ele aprendeu a jogar para ganhar algum dinheiro
extra.
Chegara
a hora. Angustiado corri para o capitão Neves e quis saber o que ele pensava
sobre o local que nos fora designado. Limitou-se a dizer que já ouvira falar.
Era um bom sítio para nós ficarmos porque o sargento Faria já o tinha
informado. Boa. Finalmente pude tranquilizar-me e, logo que soubemos que iríamos
directos do barco para a barcaça que nos transportaria a Tite, fui informar os
meus subalternos de que na barcaça teríamos de ir sempre com a cabeça abaixo da
linha da amurada para não desafiarmos o “IN”. O que? Então corríamos riscos
antes de chegarmos ao aquartelamento? E onde estavam as armas para podermos
defender-nos e, sobretudo atacar? A guerra tem cada coisa. Então nós ainda não
tínhamos armas e já corríamos riscos? Cala-te. Nem será bom pensar em tal. Se
os soldados e os cabos pressentem os teus medos ficam desmoralizados e tu foste
preparado para lhes dar ânimo, não para os desmoralizar.
E lá carregamos as bagagens para a lancha, tendo depois seguido para o cais do Enxudé, local distante de sete ou oito quilómetros do quartel e situado na margem esquerda do rio Gêba e a uns quinze quilómetros de Bissau. Aí estava uma pequena unidade de infantaria que tinha por função guardar aquele cais, não fosse ele cair nas mãos do IN. A viagem pelo rio correu bem. Só fomos distraídos pelas metralhadoras pesadas que armavam aquela embarcação e em resposta a uns tiros vindos da margem direita do Rio. Baixem-se todos, gritava o primeiro-tenente, comandante da nau. E assim que fomos desembarcados, entrámos às pressas para umas viaturas que nos esperavam para nos conduzir a Tite.
Pelo
caminho até nem fomos mal tratados de todo. Só fomos atacados uma vez, junto à
tabanca de Fóia e, de imediato, defendidos por uns bravos que guardavam a
estrada durante a nossa passagem .Afinal aquela estrada era picada diariamente
à procura de minas e guardada por um pelotão que a patrulhava constantemente.
Era por ela que se fazia todo o abastecimento civil e militar de Tite.
Ao
longe, embora cada vez menos, íamos distinguindo já umas luzes. Era Tite.
Afinal Tite era uma terra. Até tinha luz eléctrica. Só depois de lá ter chegado
é que percebi que tais luzes eram só para iluminar o exterior.
A
chegada foi uma confusão. Como já era de noite, percebi que um capitão, muito
alto, dava ordens que eu não cheguei a ouvir. Veio, então, um furriel dizer que
os sargentos iriam com ele para a messe a fim de poderem jantar e, pelo
caminho, foi-nos dizendo que em caso de ataque deveríamos refugiar-nos no
abrigo que era ali ao lado.
Que
chatice. Então e os meus soldados iriam ficar sós? Como se iriam comportar? Tem
calma, disse o tal furriel. Eles vão arrumar as bagagens na caserna e de
seguida jantar no coberto das cozinhas que era já ali ao lado. Mas eu pouco via
por estar escuro, pois não haver luz dentro do quartel e também porque estava
desorientado.
Salta
“periquito”.A todo o tempo íamos ouvindo dizer este refrão e só mais tarde
fomos informados de que “periquito” era o alcunha dado ao novato na guerra da
guiné. Estas aves eram abundantes naquelas paragens de África e o símbolo dos
novatos.
Aos
poucos fui-me deslumbrando com o à-vontade com que os meus camaradas mais
velhos se movimentavas e riam da situação, gozavam até. Eram homens já com
alguma experiência de guerra e isso até se podia ver pela cor da sua pele, já
crestada e pelas fardas desbotadas. Já tinham uma boa parte da comissão
cumprida. Invejei-os por isso.
BUMMMM.
BUMMMM. BUMMMM. Que é isto? Corram para os abrigos! Por aqui. Não tenham medo;
é a sessão de boas vindas e passa já. E passou: foram apenas alguns tiros de
armas automáticas e tres ou quatro tiros de canhão para dar as boas vindas aos
homens de C CAÇ 2314. Porra. Que merda de guerra é esta. Ainda nem temos armas
distribuidas e já fomos atacados três vezes num dia!
Veio
finalmente a hora de ir descansar, após ter passado uma revista ligeira pela
caserna dos soldados que já montavam banca para a batota e riam das
brincadeiras descuidadas com que iriam passar a primeira noite. Fiquei contente
por eles. Afinal éramos ainda umas crianças grandes e vivíamos de forma descuidada
mesmo em situação de guerra.
A
caserna dos soldados era feita de blocos de cimento encimados por cobertura de
zinco para protecção da chuva. Qual chuva? Estava era um calor danado. Era
verão naquela parte do globo. O zinco da cobertura fazia ainda mais calor e os
soldados preferiam passar a maior parte do tempo cá fora para saborear o
fresco. E também porque naquela povoação havia civis e já por ali passavam
alguns curiosos de ver os “piras”, diminuitivo de “piriquitos” e rir das suas
fardas ainda coloridas por serem novas e dos seus modos quase envergonhados por
estarem em situação tão incómoda. A intervalos, via-se passar uma ou outra
“bajuda” com os seus quinze anos verdes mas já maliciosos a querer saber quem a
queria para lavadeira. Chiça. Nem de noite esta gente descansa. Bem, deixemos
para amanhã e depois se verá em que param as coisas. E assim fiz. Fui dormir
numa cama sem mosquiteiro e toda a noite me sacudi para afugentar os mosquitos
que me perseguiam com aquele ruido de avião a jacto que incomoda tanto como a
sua picada.
Ainda
assim, dormi bem porque acordei bem disposto e cheio de fome. A messe era mesmo
ao lado do quarto, facilitando as coisas. Café com pão e manteiga. Ou
margarina? Já não me lembro. Não importa. O pão até era muito gostoso e assim
continuou a ser enquanto por lá estive. Estadia curta e cheia de peripécias.
Joaquim Caldeira - CCAÇ 2314"
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