"A fome de uns é a fome de todos"
«Passei o mês de Agosto a ir ao hospital todos os dias. E em cada um desses
dias veio um enfermeiro ou auxiliar ter comigo à porta do refeitório para
lembrar-me que eu não podia entrar ali. Eu ia de braço dado com o meu pai e só
queria garantir que ele chegava inteiro à cadeira, e preparar-lhe a comida,
como se faz com as crianças, tirar as espinhas do peixe, descascar-lhe a
laranja. Com bons modos, mas sem deixar margem para protestos ou pedidos
especiais, apareceu sempre alguém para mandar-me sair porque só os doentes
podem entrar no refeitório, as visitas estão proibidas de fazê-lo. A proibição
justifica-se por razões de organização interna, espaço, ruído, etc. A razão
principal só se sabe ao fim de alguns dias a passear pelos corredores: enquanto
puderam entrar no refeitório, era frequente as visitas comerem as refeições
destinadas aos doentes. Sentavam-se ao lado dos pais, avós, irmãos, maridos ou
mulheres e iam debicando do seu prato, ou ficando com a parte de leão.
À minha ingénua indignação inicial, seguiram-se muitas histórias de miséria que
ajudam a explicar como se pode chegar aí. Só quem, como eu, nunca a passou,
demora a entender que a fome pode roubar tudo a um ser humano. Rouba-lhe a
solidariedade até com os do seu sangue, a dignidade, o respeito, tudo aquilo
que o faz ser gente. E pelo retrato que vi nesse hospital público do Porto, há
fome nos nossos hospitais. Doentes que pedem ao companheiro do lado o pão que
lhe sobrou, a laranja que não lhe apeteceu comer, a sopa que deixou a meio. Há
quem diga que prefere comer um pão simples, ao lanche, para esconder na fímbria
do lençol o pacote da manteiga ou da compota para mandar para os catraios lá de
casa. Há quem não anseie pelo dia da alta porque, pelo menos ali, come as
refeições todas. Há quem vá de mansinho à copa perguntar se dos outros
tabuleiros sobrou alguma coisa que lhe possam dispensar.
Fica-se com um nó na garganta com tudo o que se vê e vira-se a cara para o lado
com vergonha. Vergonha por ser parte disto, por não ter gritado o suficiente,
por não ter sido parte da mudança que se reclama há tanto.
E depois estão os caixotes de lixo remexidos pela noite fora, as filas para as
carrinhas de distribuição de alimentos, o passeio do albergue cheio de gente,
gente que vagueia como sonâmbula, que discute por uma moeda de vinte cêntimos
ou por um portal onde dormir. E estão – a nossa maior vergonha – as cantinas
escolares que têm de abrir nas férias para garantir a única refeição diária de
tantas crianças, as mesmas cantinas que sabemos que estarão encerradas à hora
do jantar.
A fome reduz-nos à biologia, despoja-nos de qualquer ideal, impede-nos de dizer
não ou de levantar um dedo acusatório, e será pela fome que, como num passado
não tão remoto assim, procurarão dominar-nos.
Quando se fazem campanhas eleitorais distribuindo benesses sob a forma de
electrodomésticos, medicamentos que a miserável reforma de um velho não pode
comprar, ou mandando matar porcos para apaziguar a fome nos bairros sociais, o
que aparece mascarado de acção solidária não é mais do que a manipulação
despudorada da necessidade alheia, necessidade a que, aliás, estas pessoas
foram sendo condenadas, por décadas de injustiça social, corrupção, gestão
ruinosa, e todos os etcs. que conhecemos demasiado bem mas a que nem por isso
somos capazes de pôr fim.
E se nos distrairmos ainda acabamos a apontar o dedo aos excluídos, a fazer
contas ao rendimento mínimo do vizinho, a aplaudir o corte no salário, na
pensão, no subsídio, como se a igualdade se fizesse rebaixando, como se a
solução fosse difundir a miséria em vez de democratizar as condições para uma
vida digna.
Confesso que sinto o imperativo moral de pagar uma refeição a quem ma pede, mas
tenho dificuldades em lidar com essa pessoa. Porque quero que fique claro que a
relação entre nós, se se pode chamar relação, apenas deve ser de respeito mútuo
e, sendo certo que em qualquer momento futuro as nossas imposições podem
inverter-se, temos, um para com o outro, a mesma obrigação. Mas sinto-me sempre
desconfortável com a mendicidade do outro, com a sua posição de aparente
debilidade, com a minha ilusória superioridade. A fome de uns é a fome de todos
e já é hora de a sentirmos assim, mesmo que não nos aperte o estômago, mesmo
que não nos roube a nossa dignidade.»
Carla Romualdo.
(enviado pelo Pica Sinos)
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