Fugi de morteiros a perguntar ‘quem são eles?’
Quando cheguei à Guiné-Bissau não sabia nada da guerra. Foram tempos muito duros, mas percebi que o nosso lugar não era ali.
No dia 7 de Abril de 1967, no Aquartelamento de Artilharia Costa na Parede (Cascais), teve lugar a formação e a entrega do guião ao Batalhão de Artilharia 1914, composto por três companhias operacionais e uma de comando e serviços. Embarcámos para a Guiné no dia seguinte. No cais de Alcântara despeço-me da família, que me acompanhou ao embarque. Ao som da fanfarra militar e do acenar dos lenços, o paquete ‘Uíge’ larga as amarras.
Chegámos à Guiné-Bissau a 14 do mesmo mês. À nossa esquerda, pelo lusco-fusco, avistámos a cidade – Bissau – cujo chão não tivemos o prazer de pisar. O desembarque para as lanchas aconteceu horas depois, não sabendo os jovens guerreiros o seu destino.
Chegámos já noite ao Enxudé, porto de mar situado a cerca de 10 quilómetros do quartel, onde esta nova Companhia de Comandos e Serviços viria a ficar situada. Fomos transportados e guardados por homens armados de semblante carregado e ‘velho’, mas com apenas mais dois anos de idade.
Uma hora depois chegámos a Tite, um dos principais aglomerados populacionais. Ficava no mato, a sul desta então província ultramarina, na região de Quinará. Tite foi a localidade onde, em Janeiro de 1963, Amílcar Cabral, fundador do PAIGC, principiou as acções de guerrilha contra as tropas portuguesas. Mas todos sabíamos que o pior estava para vir… a guerra.
FUGIR AOS MORTEIROS
Quando fui mobilizado, uma vez que não era operacional, não assisti a treinos de enquadramento, que duravam mais ou menos um mês. Ou seja, de aperfeiçoamento operacional só tinha a recruta, estando longe de imaginar o que ia encontrar.
A minha ignorância era tamanha que no primeiro ataque ao quartel que sofremos, a 19 de Julho de 1967, estava a comer um petisco ‘importado’ de Lisboa, perante o som dos morteiros a serem disparados, parecido com os das portas dos frigoríficos a fecharem-se. Vi os mais velhos a levantarem-se como se tivessem molas nos pés, deixando tudo para trás numa correria desenfreada, gritando "Aí estão eles!". Eu corri na peugada dos meus camaradas, mas não deixava de perguntar: "Quem são eles?".
Era o início do nosso calvário. Entre 14 de Abril 1967 e 3 de Março de 1969 sofremos 12 flagelações. Nesse período tivemos 16 mortos (dois deles por acidente) e 47 feridos.
O inimigo actuava na região de Tite com grande mobilidade, era conhecedor do terreno com pormenor. Estava organizado militar, política e administrativamente e com o apoio das populações, era forte, aguerrido e dispunha de um potencial de meios de guerra igual, se não superior, aos do Batalhão. Exercia também uma actividade importante no controlo das populações e na sua promoção social.
Um dia, na palhota da minha lavadeira, estava uma mulher que nunca antes avistara. Ao mostrar-lhe uma fotografia, onde estava com a minha namorada, perguntou-me fixando bem a minha face: "Qual é a razão da vossa presença neste país?" "Estamos aqui para vos defender", disse convicto. Não ficou satisfeita. Com os olhos rasos de água, retorquiu: "Já pensaste que se não vos mandassem para cá, não existia esta guerra, que os nossos rapazes não eram forçados a combater-vos, que os nossos haveres e produtos agrícolas não eram roubados, quer por uns quer por outros?". Esta conversa fez-me ‘ver’ o outro lado da moeda.
Regressámos a Lisboa na manhã de 9 de Março de 1969. Fomos recebidos com muita emoção por familiares e amigos e só então pudemos respirar fundo e dizer "já passou..."
PERFIL
Nome: Raul Pica Sinos
Comissão: Guiné (1967/69)
Força: Batalhão de Artilharia 1914
Actualidade: Reformado do sector da distribuição alimentar, vive em Corroios. Aos 65 anos, tem duas filhas e três netos
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Com a devida vénia ao Correio da Manhã, transcrevemos esta crónica escrita pelo nosso colega Pica Sinos e que veio inserida na revista DOMINGO, de 25 de Setembro de 2011.
2 comentários:
Um luxo ! . . .
E, bem o merecemos, aliás, modéstia à parte.
Colunável, o n/B’Art, graças ao árduo, profícuo e bem conseguido trabalho do n/Pica. Incansável e de parabéns.
Pena, ter-se perdido e estragado lá pelas Trms.
E, na forja, tal cereja no cume do bolo, segundo depreendi, a perspectiva duma internacionalização dos convívios de aniversário, que o pessoal de Lisboa e arredores, e muito bem, vêm fomentando.
Bem me faço ao “barrote”, amuando, numa tentativa de infiltração . . . mas,
Cada um terá a sorte que merece . . .
Pica como recordei esta do "quem são eles".
Creio não me enganar que esse petisco foi nas casernas no alinhamento do edifício das tms onde os "Paras" se instalaram aquando daquela operação em grande.
Tenho a impressão que foi nesse ataque que eu e nosso Cavaleiro nos enfiamos debaixo da grossa mesa do CCp a bater o dente e sempre a espera de "uma" encomendada para nos.
Nunca mais esqueci esse ataque; O estrondo dos rebentamentos, a fumarada que se metia pelas janelas,os gritos do pessoal, o cheiro intenso a cordite...enfim foi um duro batismo de fogo.
Recordas aquela granada de morteiro deles, que rebentou junto da paliçada em frente ao CCp, cuja chapa ficou parecia renda de tantos estilhaços?
Enfim amigo, gostei de ler e ver o texto (la estou eu ao cantinho na foto de grupo com os velhinhos do batalhão que fomos render, e como os invejava).
omo sempre esta "rápido, preciso e conciso"...o lema da nossa especialidade, lembras-te.
Um queijo pra ti e continua a desbravar os terrenos desconhecidos!!!
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