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“Se servistes a Pátria que vos foi ingrata, vós fizestes o que devíeis e ela, o que costuma”


(Do Padre António Vieira, no "Sermão da Terceira Quarta-Feira da Quaresma", na Capela Real, ano 1669. Lembrado pelo ex-furriel milº Patoleia Mendes, dirigido-se aos ex-combatentes da guerra do Ultramar.).

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"Ó gentes do meu Batalhão, agora é que eu percebi, esta amizade que sinto, foi de vós que a recebi…"

(José Justo)

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“Ninguém desce vivo duma cruz!...”

"Amigo é aquele que na guerra, nos defende duma bala com o seu próprio corpo"

António Lobo Antunes, escritor e ex-combatente

referindo-se aos ex-combatentes da guerra do Ultramar

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Eles,
Fizeram guerra sem saber a quem, morreram nela sem saber por quê..., então, por prémio ao menos se lhes dê, justa memória a projectar no além...

Jaime Umbelino, 2002 – in Monumento aos Heróis da Guerra do Ultramar, em Torres Vedras
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“Aos Combatentes que no Entroncamento da vida, encontraram os Caminhos da Pátria”

Frase inscrita no Monumento aos Heróis da Guerra do Ultramar, no Entroncamento.

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Sem fanfarra e sem lenços a acenar, soa a sirene do navio para o regresso à Metrópole. Os que partem não são os mesmos homens de outrora, a guerra tornou-os diferentes…

Pica Sinos, no 30º almoço anual, no Entroncamento, em 2019
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"Tite é uma memória em ruínas, que se vai extinguindo á medida que cada um de nós partir para “outra comissão” e quando isso nos acontecer a todos, seremos, nós e Tite, uma memória que apenas existirá, na melhor das hipóteses, nas páginas da história."

Francisco Silva e Floriano Rodrigues - CCAÇ 2314


Não voltaram todos… com lágrimas que não se veem, com choro que não se ouve… Aqui estamos, em sentido e silenciosos, com Eles, prestando-Lhes a nossa Homenagem.

Ponte de Lima, Monumento aos Heróis da Guerra do Ultramar


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terça-feira, 22 de fevereiro de 2022

Velho diário - José Justo


 


Velho Diário Incompleto                                                                                                      Intróito e pág. 1 de 7  

Intróito:

Por alusão de um grande amigo e ex-companheiro de armas, a um seu Diário escrito na Guerra da Guiné nos anos 60, e que no regresso à Metrópole, após dois anos de comissão, num rompante, decidiu larga-lo borda fora do navio UIGE, lembrei que também eu tinha feito uma “ameaça de Diário” exactamente na mesma época e local.

Muito procurei e lá o descobri nos recônditos de montes de papelada e livros...

Eis umas breves notas explicativas.

Ficou pelo caminho esta tentativa de fazer um “Diário de Guerra” na Guiné...começou tarde e terminou cedo !!

Estes textos não tem o mínimo de pretensões literárias, nem grandes “desanrrincanços” de prosa, nem muita qualidade...mas são sinceros, porque foram vividos intensamente e escritos com o coração !!

Estão bastante espaçados no tempo, porque não havia grande paciência para a escrita, nem disso eu era muito amante.

Foram passados ao papel em ambiente de guerra, no quartel de Tite, sempre nas madrugadas daquelas longas noites e com pouco mais de vinte anos.

Até para casa e família, as minhas cartas eram escassas e lacónicas.

Anos mais tarde, disso bastante me penitenciei, pois a  ausência de noticias muito fazia sofrer meus pais.

Sempre me exprimi com algum sucesso, por palavras e “bonecos”.

Ao invés, confesso a falta de jeito com a pena, para narrar no papel a catadupa e turbilhão dos meus pensamentos.

Não inclui relatos pormenorizados dos ataques do PAIGC que sofremos, tendo-o no entanto feito em folhas de papel, com o intuito de mais tarde os incluir num capítulo em separado “Ataques ao Quartel”

Infelizmente esses manuscritos levaram sumiço, o que é pena, pois continham descrições pormenorizadas, medonhas e sofridas, com número de mortos e feridos, estragos materiais etc., dos maiores ataques efectuados durante dois anos.

Ao meu rigoroso e saudoso pai, que muito me ajudou e com quem bastante “conflituava” naqueles tenros anos, a minha grata recordação.

Só mais adulto, o comecei a compreender e verdadeiramente a amar.

Muito me apoiou sobre todos os aspectos, neste amargo período da minha vida.

Ele sabia dar valor ao que eram as saudades e o ambiente de guerra, pois como furriel miliciano de engenharia, tinha nos anos 40-42, também passado pela Guiné e feito comissão na Ilha do Sal, Cabo Verde (a foto foi tirada e colorida a aguarela por ele).

Sempre o vi, até à sua doença e ausência física, como um líder, sempre a estudar e elevar-se profissionalmente.

Involuntariamente e com tristeza, cedo admiti, lhe ter dado vários desgostos.

O seu grande sonho de ver os filhos Dê Rés; o “assentar”, casar e constituir família; depois de casado, o não querer ter logo filhos; o sair de casa pouco tempo após o regresso da Guiné; o nunca acabar o curso de programador no Centro Informático da RTP que ele chefiava, ficando-me pelo de Mecanógrafo, entre outras avarias pós Guiné, n’uns loucos anos, em que vivia como se fosse o último dia – noite, melhor dizendo - da minha vida.

Mesmo assim, foi esse curso informático, que me proporcionou o primeiro emprego a sério pós Guiné, e onde curiosamente me metia com uma colega que não podia comigo nem um bocadinho, que tinha uns olhos lindos, e que infelizmente para ela, acabou por comigo casar e piedosamente me aturar com “pachorra” de santa há... 37 anos.

37 anos que me parecem 37 dias !!...Gosto mais dela do que torradinhas do meio !!

Ainda sobre o pai: Todos sabemos e facilmente se adivinha o que seria naquele tempo e condições, a alimentação da “soldadesca”.

Quando em comissão no Ultramar, era-mos obrigados a deixar cerca de metade do vencimento a um familiar na Metrópole, recebendo na zona operacional o restante.

Como não conseguia tragar a comida do quartel, passava o tempo a “lutar pela vida” ora comendo no “Branco” ora alinhando nos petiscos que os camaradas arranjavam.

Claro que isso trazia custos acumulados, e como o que recebia não chegava, passava a vida a pedir ao pai para me enviar a “pensão” de que ele era fiel depositário.  O dinheiro da Metrópole tinha uma mais valia, pois “cambiávamos” por mais 10%  em “patacão” da Guiné.

Esgotei a pensão, mas ele nunca falhava com o apoio monetário, dizendo que lhe pagaria quando findo o tormento, já em “casa”, tivesse a vida organizada e começasse a trabalhar.

Quando finalmente me vi regressado à casa paterna, com que alegria ele me dava as novidades....

A primeira refeição foi frango assado picante com bata frita às rodelas e esparregado salteado com alho (que eu adorava), depois o nosso quarto remodelado, nova televisão, obras na nova casa...tudo preparado para a recepção do” filho pródigo”.

Por último - surpresa maior - a papelada para abrir uma conta bancária com todo o dinheiro da pensão de dois anos, que supostamente me teria enviado para a Guiné, mais uma verba que ele dizia ser de “juros do capital investido” !!

Fiquei espantado !!

Nunca mais esquecerei deste gesto.  Muitos outros de grande generosidade se seguiram pelos largos anos que ainda viveu.

A minha singela homenagem, ao grande homem que me vincou o carácter e do qual muito herdei.

JJ – Maio 2009

Glossário:

Bolanha - Grandes extensões de água pantanosa que serpenteiam por toda a Guiné-Bissau, onde se planta o arroz.

Tabanca - Aglomerado de casas das populações nativas em barro e colmo.

“Branco” - Único comércio/restaurante/bar, existente em Tite, propriedade de um Metropolitano branco.

Patacão - Dinheiro na gíria da Guiné.

PAIGC - Partido Africano para Independência Guiné e Cabo Verde, designação do único grupo de guerrilha que nos combatia na Guiné.

IN - Abreviatura militar para Inimigo

NT - Abreviatura militar para Nossas Tropas

“Saidas” - Estrondo característico dos disparos de granadas de Morteiro e Canhão sem recuo.

Morteiro - Lança granadas vertical de infantaria

Canhão sem recuo - Lança granadas de infantaria, podendo ser montado num Jeep.

RPG7 - Lança Granadas Foguete

Roncos - Espécie de amuletos da boa sorte, normalmente em forma de cinto ou colar, usados principalmente pelos guerrilheiros, como “protecção”.

Também se designavam por Ronco, as festas nativas.

Choro - Comemorações nativas fúnebres.

Tite 4 de Novembro de 1967............................................3,5 da manhã no Centro Cripto

Não será um diário o que pretendo fazer.

Não é isso que quero ao começar a analisar e mais propriamente ainda, conservar nas páginas em branco de um insignificante livro.

Sei não ser este o meio mais usual para guardar ideias (ou talvez seja...) mas que me importa o cenário, se ao deixar transparecer um pouco de mi próprio me torna mais fácil o continuar sempre igual e terrível dos dias que amargamente terei que aqui passar.

Mais um dia, igual decerto ao que há oito meses atrás marcou o começo pouco risonho de mais um marco da minha vida.

Será um dia simples ??!!...ardentemente desejo que seja na realidade um dia simples.

Só aqui nesta terra dos longos silêncios e das vistas largas pelas Bolanhas, sinto a felicidade do recordar das coisas pequeninas e sem história, mas que me faziam feliz.

Sei que poderá ao contrário ser também um dia de desgraça, catástrofes e morte.

Portanto um dia escuro como escuro é também o negro do luto, e amiúde, o tom da minha alma.

Sei que poderá ser amargo e negro, em que mais uma vez sinta o terror que já tantas vezes senti.

O mais desesperante, é a permanente incógnita, quando o dia começa a morrer e a negrura da noite cai sobre nós, o eterno receio de mais um ataque.

Será hoje ? e quando ? durará muito ?...

Apercebemo-nos que o dom auditivo se desenvolveu em todos nós de uma forma estranha.

Conseguimos captar o mais estranho som a quilómetros de distância, o que nos proporciona as rápidas fugas para os abrigos ou postos de combate, logo que se ouvem ao longe os estrondos das “saídas”, denunciando o começo de mais um ataque.

Mas que posso fazer ??

Não estou eu, bem como tantos, condenado às intempéries de um futuro tão sombrio ?

Tão incerto como tudo o que conhecemos, um futuro que será tudo menos: risonho, feliz e tranquilo, um futuro que ficara talvez na minha memória como um espaço de tempo tão doloroso e amargo, tão terrífico que só a simples lembrança me causará medo.

Tanto desejo que isso não aconteça que uma simples esperança se vai avolumando em mi de uma maneira tão categórica que já se tornou uma obsessão.

Eu quero que o dia 1 de Novembro (aniversário da mãe( seja o desfolhar natural de mais uma folha de calendário.

Quero que quando esta mesma folha tombar com a sua história passada, não seja uma data para fixar.

O que há tempos atrás me parecia uma criancice, naturalmente hoje é um ardente desejo.

Sinto que o mundo de fantasia e de boa vida vivida, repleto de esperanças e grandes planos, hoje, não está morto, mas sinto que está sobremaneira transformado.

Transformado com a necessidade premente de uma aniquilação total e negligente para facilitar o alheamento da confusão em que me vejo.

Recordo que no princípio da comissão, quase todas as minhas noites eram um manancial de belos sonhos e até de prelúdios mais ou menos longos e felizes.

Tudo revivia, com a plena certeza de apenas os interromper por um tempo.

Hoje, passados 212 longos e penosos dias em Tite, que se arrastam, essa convicção já nem sequer me torna feliz.

Sobrepoe-se à certeza bela e realizável, o monstro enorme e horrendo da incerteza e dos contínuos pavores.

Tento não desanimar...

Contudo tão difícil se torna já a ideia de que o tempo que imperiosamente ainda me resta de sofrimento nesta maldita, mas também tão bela terra, terá que passar tão lentamente que a sua lentidão me causa horrores.

Não são os dias em si que me atormentam.

É sim o que eles também contém e conterão, o que definem e hão de definir com o seu inconstante nascer e morrer.

Relembro hoje a data de 19 de Julho de 1967, o nosso primeiro ataque em grande escala.

Relembro, ainda mais recentemente, o dia 31 de Outubro e 1 de Novembro.

Quantos dias como estes ainda terei mais que passar ? Quantos medos arrepios sentirei percorrerem-me todo o corpo até o sentir gelado ?

Quem ganhará na realidade com esta guerra ? eu só vejo perdas...principalmente de vidas e de carácter, perante as durezas da guerra.

Tantas perguntas e nenhuma resposta !!

Tantos horrores, tanto sangue e morte ainda terei que presenciar para finalmente o dia glorioso do regresso se impor ao que tanto me torturou e fez sofrer.

Quero logo que ponha os pés no meu amado BA e a Lisboa que eu amo, apagar da memória estes malditos dois anos de Guiné.

A constante de dois longos anos, é e será sempre tudo o que não quero, mas que forçosamente tenho que suportar.

Tudo o que nunca imaginei poder ser verdade e concluí corresponder à verdade, à imagem real de factos sempre presentes em quem os passou e em quem os passa para mais tarde os abandonar e trocar por tudo o que são os “sonhos lindos”.

Mesmo esses que tudo sofreram e agora tudo gozam, de certo se lembram dos que, e para quem, planos futuros lhes serviram a eles de mortalha e aos outros de lágrimas e dor.

“Na paz os filhos enterram os pais, na guerra os pais enterram os filhos”...tanta verdade esta frase contém !!

Já por duas vezes vi camaradas de armas morrerem, e por duas vezes senti que transpareciam em mim todas as quimeras por eles ansiadas e tão cedo a morte lhas ceifou nesta maldita Guiné.

Dura experiência essa que passei.

Duras horas também as que se seguiram.

É nesses momentos que se sente o terror, a incógnita e obrigatoriamente uma pergunta se enraizou no meu cérebro que sinto já tão doentio: Quando será a minha vez ? será que também eu vou ter este fim? e se fico sem pernas - ainda tenho em mente passados tantos anos as imagens do nosso camarada apanhado por uma mina na Estrada de Nova Sintra, que lhe amputou ambos os braços e pernas -, cego, condenado a uma cadeira de rodas para toda a vida ?

Prefiro a morte, a ficar por metades, estilhaçado e dependente da caridadesinha alheia. 

Nunca !!....

Quando por fim me volto a sentir mais tranquilo, acredito que a vida me voltará a sorrir e serei de novo o insignificante mas feliz humano que só com 22 anos, tanta desumanidade já viu, viveu e teme, ainda viverá...

Sei que tudo terminará, e tudo dentro de alguns longos meses, não parecerá talvez, mais que um simples sonho mau, o qual terminou quando acordei e vi frente a mim os rostos felizes de todos os que me são queridos, e a janela aberta para a vida convidando-me a entrar no seu seio de frivolidades, incertezas também, alegrias e nunca mais  ódios.

Vou esgotando dia a dia nesta vermelha terra, a capacidade de voltar a odiar !!

Tite 12 Novembro 1967 .........................................................2 da manhã no quarto e Centro Cripto                        pág. 2 de 7

Não recordo quando teria sido a última vez que peguei neste “Diário”, contudo não vejo também qual o valor que possa ter, fixar uma data, que por si só não tem o interesse que tantas outras ao contrário possuem.

Recordo vagamente que temia o que na realidade aconteceu.

Mais uma vez...momentos tão desesperantes...

Tudo começou como quase sempre.

Era dia 1 de Novembro, dia dos anos da mãe Lena e tantas vezes dela me lembrei, que se foram tornando um bálsamo esses mesmos momentos.

Todos esperava-mos que durante o período de fins de Outubro e meados de Novembro, acontecesse qualquer coisa que pudesse ser adicionado a tantas outras congéneres.

Fomos avisados na madrugada deste dia que os “turras” (designação na gíria militar em referência aos guerrilheiros, a nós eles, chamavam-nos TUGAS) se encontravam em Tite de Baixo e Tite Mancanha, em dois “bigrupos” (equivalente ao nosso Grupo de Combate) preparados e equipados com artilharia pesada de Infantaria, para atacar naquela noite o quartel de Tite.

O informador referiu também que o PAIGC, na véspera tinha arrebanhado nas tabancas próximas, várias dezenas de nativos, que como era hábito, serviriam de carregadores de munições e armas pesadas para a realização do ataque.

Com a rapidez costumada nestes momentos, logo se preparou a defesa.

Assim que soube a notícia, fui para junto da Arrecadação de Material de Guerra, aproveitando a ocasião para ajudar o Palma a abrir cunhetes de munições e preparar algumas metralhadoras extras, granadas de morteiro etc. para logo que necessário entrarem em acção.

Tudo estava preparado.

Todos a postos.

Reforço dos postos avançados com mais pessoal e munições, as duas Auto-metralhadoras Daimler a postos junto à porta de armas para pronta saída, os não operacionais directos abrigados nos respectivos abrigos, luzes desnecessárias apagadas e o mortal silêncio dos momentos de grande expectativa.

O tempo foi decorrendo com uma lentidão mortal, tornando a espera num crescendo enervante, mais do que nunca era penosa a espera, e a cabeça estava num turbilhão.

Sentia um medo enorme, e fumava sem parar. Estava de serviço e não sai do Centro Cripto, pois embora ligeiramente protegido com sacos de areia por cima do teto, tinha-mos uma mesa de trabalho enorme e super grossa de madeira de Bissilon muito rija que dava alguma protecção.

Sei que durante momentos, algo indescritível, um nervoso miudinho, me impedia de raciocinar direito.

O arrastar penoso do tempo era uma tortura difícil demais de suportar.

Reflectia-se em todos uma falta de animo, neles próprios e nos outros, que contribuía para o desanimo geral e falta e confiança mutua.

Tanto tempo passou !!

Nada se ouvia que nos pode-se dar uma ideia de como, quando e vindo de que direcção, seria o ataque.

Nada que desse azo a que cada um desse largas ao ódio contido dentro de si próprio.

Mais uma vez o reacender do instinto animal da lei da guerra “matar para não ser morto”...

Nada que fizesse as culatras levarem a ração de morte que a cada um cabia, pela implacável mão drástica do destino sempre incansável quando semeia a morte.

Tudo continuava quase normal...

Mas foi passando o tempo...nada...nada...nada...

Óh! Que horrível ansiedade.

Porque nada acontecia ? porque não começavam tudo aquilo para que tinham vindo, porque não concretizavam todos os seus intentos ? porque não COMEÇAVAM COM AQUELA MERDA, PORRA ? Que estavam a tramar para ainda não terem começado com os momentos de pavor ?

Já passava das duas horas da manhã, quando ouvimos duas longas rajadas de metralhadora que passaram por cima do quartel, da PPSH (a costureirinha) provavelmente.

Devia mesmo ser a “costureirinha” pois era a única arma automática do PAIGC que operava com carregadores circulares de 75 munições, daí as longas rajadas.

Começou então um verdadeiro pandemónio, que de antemão tanto temia...começou o inferno, a destruição e morte...

A nossa reacção foi imediata e no ar ficou a pairar o fumo, o fogo de morteiros, o matraquear de armas ligeiras, como que um convite a morrer.

Uma gentileza gratuita; Morrer para deixar de sofrer, quase vale a pena !!!

Contando os longos momentos pelo matraquear convulsivo e macabro das nossas metralhadoras, o estrondo de saídas dos nossos morteiros, comecei a contar as contas do meu rosário pagão, das minhas recordações, e mais uma vez nessa noite me lembrei de minha tão querida mãe. 

Vi nitidamente a sua imagem esfumada à minha frente por segundos !! É sempre a imagem da nossa mãe que em teatros de guerra, nos acompanha nos últimos momentos de vida. Isso já foi relatado em vá´rias ocasiões.

Fazia hoje anos, mais um aniversário na minha querida mãe que tanto adorava, e que tanto me protegeu, apoiou e escondeu de meu querido, mas tão ríspido Pai.

Parece ironia, mas o presente de anos foi para mim.

Sei apenas que nunca da minha memória será esquecido o dia 1 de Novembro de 1967.

Os ataques feitos pelo PAIGC ao quartel eram efectuados com método e muito bem planeados.

O maior perigo para as NT eram os primeiros rebentamentos dentro do quartel, pois invariavelmente atingiam sempre zonas vitais.

O porquê, era simples.

Os ataques do PAIGC só se efectuavam já noite, para que a nossa força aérea não perseguisse os guerrilheiros na sua fuga pós ataque para as bases instaladas a quilómetros do local, a Norte no Senegal e a sul na Republica da Guiné.

O quartel era naturalmente super visível à noite a uma grande distância, e toda a iluminação exterior do arame farpado demarcava em pormenor o perímetro do mesmo.

Com os ataques feitos na base de morteiros e canhões sem recuo, armas pesadas de Infantaria, tinha o IN todo o tempo do mundo para se instalar a alguns quilómetros de distância, nas posições operacionais mais convenientes.

As luzes, bem como mapas desenhados do quartel ??!! permitia-lhes referenciar e regular os aparelhos de pontaria com a máxima precisão.

Com a sucessão do disparo de dezenas, por vezes centenas de granadas, com os recuos naturais, as armas iam alterando as cotas de tiro, e as granadas caiam mais deslocadas dos centros nevrálgicos, fazendo no entanto sempre bastantes estragos.

O mapa do quartel de  Tite capturado, entre outros documentos, a um guerrilheiro morto, fora decerto fornecido pela irmã de um comerciante nativo, que se soube, mais tarde, ser informadora do PAIGC e passar a vida a espiar as NT.

É curioso como nos momentos maus e verdadeiro sofrimento, o pensamento nos foge, procurando a imagem bela da pessoa que mais amamos.

É sempre a imagem da nossa mãe quem avidamente procuramos e é pensando nela que muitas vezes os olhos de fecham para não mais se abrirem...é a última vontade, o último agarrão à vida que se esfuma, o último consolo para quem pouco pedia e até a própria vida deu, sem o querer e sem saber muito bem para quê...

Tudo findou...tudo findou como se nada na realidade se passasse.

Não houve feridos nem mortos desta vez.

Não os houve felizmente para todos. Eles não fizeram um ataque formal como de costume.

Tudo o que temia-mos, desta vez não foi avante.

O que fizeram, comparado com o que era hábito, foi mais uma vez um simples espicaçar dos nossos nervos.

Volta e meia, e mesmo durante o dia ouviam-se rajadas por cima do quartel em tom de desafio, e para provocar a instabilidade nas NT.

Logicamente todo o pessoal desatava numa correria para abrigos e postos de combate.

Sempre para nos darem cabo da cabeça...eles sabiam ser eficaz esta guerra psicológica...

Por sorte e feliz acaso, não tivemos ocasião de ver repetir-se o espectáculo a que já nos acostumamos, mas que de cada vez se torna sempre mais desencorajante.

Quando nos avisaram do iminente ataque, o nativo, elemento da população, foi instruído para nos levar a cair numa emboscada já preparada.

Por isso mesmo, e esperando a nossa saída do quartel para montar-mos emboscadas, tinham já eles colocado minas e armadilhas com granadas na estrada de acesso a Tite de Baixo e Tite Mancanha.

Com um pavor medonho imagino a carnificina que seria.

E por mi vi passar o dia em que na estrada de Nova Sintra rebentou uma mina.

Revejo a correria  dos “jipões” com os feridos, uns para a enfermaria, outros para a pista onde os helicópteros Alouette III os viriam evacuar.

O seu destino era o fatídico hospital Militar de Bissau, e nos casos ainda de maior gravidade, a evacuação para o Hospital Central de Lisboa, o que para os sobreviventes era quase preferível, e uma sorte, para não suportarem uma guerra tão longa e arrasante.

Destes hospitais por onde milhares de militares passaram e de onde tantos já saíram, mas não para continuarem o laborioso dia-dia que lhes é imposto, que lhes é obrigatório cumprirem.

(Sabia-se que dentro da eterna política do esconder e camuflar a Guerra do Ultramar, foram dadas instruções rigorosas para que os feridos graves evacuados para a Metrópole, só fossem desembarcados no Aeroporto de Lisboa e enviados para o Hospital Militar da Estrela, de noite, muito discretamente, e no máximo secretismo)

Sei que tudo o que mais temo não ficará por aqui.

Sei também que tudo o que é francamente mau, tem tendências predominantes e que inevitavelmente se impõe sempre.

Que posso fazer ?

Estará na minha mão, sozinho regenerar o Mundo ? Não o creio, porque é impossível...

Até ao próximo escrito, que não sei quando será, ou se o conseguirei fazer.

Tite 25 de Novembro de 1967........................................ 3,10 da manhã no Centro Cripto                                         pág. 3 de 7

Nada de especial consumou mais um dia sem acontecimentos relevantes (felizmente, por um lado), mais um dia sem história e mais um dia a pensar se “virão hoje à noite ?”.

Não sejam pequenos nadas a proporcionarem raros momentos de boa disposição e não seria tão menos penoso a descida que termina quando também terminar o monótono desfiar de recordações e mágoas, mas com o doce cenário de um outro local, outras gentes e outro bulício, que não sejam estes.

Às vezes vejo toda a beleza desta terra, do habitat que me rodeia com agradável prazer, esquecendo o quanto também a odeio, mas fico estarrecido perante tanta beleza natural e principalmente o cheiro intenso, doce, único, desta terra vermelhão.

Tantos momentos já me senti num extase completo e magnifico ao estar longos períodos a contemplar o panorama tão belo de um por de Sol, de uma árvore mais exótica, de um pequenito nativo chapinhando na água turva, enlameada da Bolanha, na naturalidade com que a mãe dá o seio grande , negro e belo à criança que parece nunca estar saciada, ao silêncio imenso das enormes extensões de Bolanhas, salpicadas com algumas árvores isoladas, como que envergonhadas de si próprias e da sua solidão, dos maravilhosos pássaros de cores celestiais.

Nunca imaginei tanta poesia, nem quadros tão belos que perante os meus olhos desfilam, fazendo esquecer o verdadeiro sentido de estar ali...a guerra...

Se conseguir sair daqui inteiro, se esta maldita guerra terminar a contento dos dois lados, tenho que cá voltar daqui a uns anos, como civil, para então sim, me embriagar de toda esta beleza africana.

Encher bem os pulmões destes doces odores.

No entanto são tão poucos esses momentos e cada vez menos costumados, que sinto fugir-me aquele tão grande amor pelo que é belo e vale a pena admirar.

Sou por vezes um romântico...

Sei que nunca me chamariam de tal, porque sei nunca ter dado a adivinhar a alguém um sentimento que teimo em esconder.

Não que o esconda por vergonha ou medos, mas apenas porque só o vejo na realidade realizado dentro de mi próprio.

Fechado na caixa de ouro em que nasceu e que forçosamente morrerá...

Mesmo n’uma constante luta, penso que só momentos como estes me podem tirar o peso também constante de uma vida atormentada e de medos, apenas constituída por sobressaltos e um terror de terminar antes de começar.

Este continuar a poder  abrir a minha caixa de ouro, sempre que quiser, para somente a fechar quando sentir ter conseguido mais um lenitivo para as horas, minutos e segundos em que sinto o fel amargo do desanimo de mim se apoderar...

Que a vida continue mais um pouco, para me mentalizar para a morte !!!

Tite 13 de Janeiro de 1968................................3 horas da manhã, no C. Cripto                                                            pág. 4 de 7

São 3 horas da manhã.

Mais um período de serviço está prestes a terminar.

Como a maior parte das vezes, foi um dia movimentado no tráfego das “secretas”.

Infelizmente será um dia memorável no mau sentido para tantos, o que para mi não passou de mais um.

Mais um a juntar a tantos sempre tão iguais desta maldita guerra.

Empada e o destacamento de Gubia, foram atacados simultaneamente.

Quase já me habituei a saber estas desgraças.

Penso o que terá sido a vida dos outros, dos que hoje deram decerto o máximo deles próprios para poderem garantir a integridade de si e também dos companheiros.

Gubia tem tido azar !

Três dias seguidos de ataques.

Não podem ter um pouco de sossego.

Para eles vai a minha grande admiração. Aqui também sabemos o que isso é ! aliás, toda a Guiné sabe o que isso é !!...

Espero o dia em que também voltemos a viver o tempo incontável que demora esse cáus.

Sinto que não falta muito para de novo reviver momentos como os de 19 de Julho, 6 Novembro e tantos outros, que já vou esquecendo as datas.

Esperemos...

Tite 05 de Abril de 1968...............................................3 da manhã no Centro Cripto                                                    pág 5 de 7

Tanto se passou desde a última vez que me dediquei a fazer mais um pouco de simples prosa no meu “Diário”.

Muitas novidades, muitos feridos e mortos, muitos costumados pesadelos...

Não posso deixar de recordar a madrugada do dia 3 de Fevereiro de 68.

Foi o dia fatídico de Bissassema. O dia em que mais ainda me fez sofrer...

Já muito vi n’um ano de Guiné já vi a morte algumas vezes marcar presença a poucos metros, mas nunca tive tão apavorado como daquela vez.

Volto em pensamento à noite  de 2 de Fevereiro...

Estava no posto de rádio a jogar o meu pseudo Ping-Pong (bola contra a parede do posto de rádio) que normalmente me retinha por uns momentos ocupado, quando o furriel Cavaleiro entrou bastante excitado ??!!

Disse-me. – Justo, está quieto com isso, pois ouvem-se fortes rebentamentos na direcção de Bissassema e é provável que seja ataque à nossa malta de lá.

Saí, e de facto comprovei os medonhos rebentamentos, trazidos por vento favorável.

Tanta vez tinha-mos ouvido esta “música” que já não era de maneira nenhuma uma novidade, mas dessa vez causaram-me forte impressão, pela enorme quantidade e por ouvirem-se com uma nitidez impressionante, o que não era natural, mesmo com vento favorável, pois Bissassema ficava a mais de 15 kms.

Logo o pressentimento de que algo de anormal se passaria, me assaltou, recordo que me senti bastante estranho, facto que me admirou por ser tão forte.

Não parecia uma simples flagelação, mas mais um fortíssimo ataque.

Uma longa hora durou o pandemónio a que assistimos sem qualquer notícia, ou comunicação via rádio que nos fosse benéfica.

O contacto via rádio era praticamente impossível, pois os DH5 só eram ouvidos durante o dia e à noite deixavam completamente de se ouvir.

Depois de findos os tramites normais em casos de ataque (tentativa de reforço, comunicação por mensagem Zulu (grau máximo de prioridade via rádio) para Bissau, tentei finalmente  dormir.

Não consegui com facilidade conciliar o sono, embora me sentisse exausto.

Pensei em coisas horrorosas o que contribuiu para mais dificilmente ainda conseguir a tranquilidade mínima para conciliar o sono

Hora e meia, tinha durado apenas o meu sono.

Acordei com o barulho provocado pela entrada de roldão do alferes Carvalho pelo nosso quarto dentro, n’uma excitação que na altura não compreendi.

Falava, ou melhor , gritava ordens, pragas e gesticulava imenso.

Poucos minutos bastaram para me aperceber do que se passava.

...Bissassema tinha sido tomada  e ocupada pelas tropas do PAIGC, e a s nossas forças retiraram desordenadamente em consequência de numeroso grupo do IN, que tinha atacado com uma força e efectivos enormes.

Tinha-mos sido avisados pelo Gomes Furriel de TMS, que tinha ido bem como o Contino Op. Cripto e o Capitulo Rádio-Telefonista, formar a secção de TMS e Cripto no destacamento para contacto com o nosso Batalhão.

Dar um exemplo do aspecto do Gomes é dificil.

Branco, mortalmente branco, tremendo e mal conseguindo articular  as palavras que lhe saiam inaudíveis, conseguiu por alto relatar alguns pormenores do que foi uma das  piores derrotas militares sofridas pelas nossas forças.

Pelas primeiras impressões, temia-se que tanto o Contino como o Capitulo tivessem caído nas mãos dos “turras”.

Mais tarde tivemos a confirmação, quando de manhã começaram a chegar os que tinham conseguido iludir a vigilância dos guerrilheiros e puderam regressar a Tite.

Chegaram fugidos ao Enxudé, vindos da vários caminhos, pois poucos conheciam o caminho exacto, tendo também que evitar caminhar em direcção que lhes fosse desfavorável por levar a acampamentos do IN.

O que vi quando ao procurar noticias de tudo e todos os camaradas, será uma imagem que nunca mais esquecerei.

Rostos que tinha visto sorrir, estavam marcados pelos vincos profundos da dor, do desespero e desanimo.

As lágrimas que lhes vi na face, os olhos vermelhos e inchados, cobertos de lama e na maioria descalços e rotos, parecendo figuras de filmes de terror, com forças apenas para agarrarem desesperadamente a G3, a sua própria e única salvação para manter a vida, quando em redor somente a morte.

Para mais esses, que vi entrarem à porta de armas do quartel de Tite, na manhã de 3 de Fevereiro de 1968 vão as lágrimas que não derramei, mas que verdadeiramente senti...

“3 Fev 68 – Ataque Bissassema

Resultado da operação feita na véspera em que fizeram parte CCAÇ 2314; CART 1743, Pelotão Sapadores da CCS e 3 pelotões de milícia nativa.

Em consequência do forte ataque o IN ocupou Bissassema, caindo prisioneiros o Contino, Capitulo e Alferes Rosa.

Na retirada desapareceram o Furriel Sousa e um Sargento da milícia de Tite.

Mia tarde o Sargento foi encontrado morto no Rio Geba.

O cadáver foi recuperado sendo impossível o mesmo no que respeita ao Furriel Sousa do Pelotão de Morteiros.

Foram ouvidos na rádio Konacry (rádio oficial e de propaganda do PAIGC, situada na República da Guiné) o Contino, bem como o Alferes Rosa e o Capitulo.

Em vários ataques posteriores à reocupação de Bissassema pelas nossas tropas, foram mortos 22 guerrilheiros e apanhado diverso material de guerra.

Um ferido IN veio para Tite, tendo morrido dias depois em virtude dos ferimentos”.

Tite 02 de Março de 1968------------------------------------2,40 da manhã, no Centro Cripto                                                  pág.6 de 7

Não sei bem como começar a descrever mais um infindável número de factos, já macabros pela própria forma como decorreram.

Mais um daqueles costumados momentos maus.

Não sou muito claro quando digo momentos maus, porque cada segundo que aqui passo nesta terra, não é senão um suplício tremendo. – Vou chamar-lhes antes, os piores momentos !!

Comecei outro contar desenfreado até 22 no dia 2 de Março de 68...parece talvez anedota correr e contar, mais parece de maluquinhos, no entanto, podemos salvar a vida com este simples suceder mental e rápido de algarismos.

Tem uma justificação prática e bastante útil este sistema.

Logo que identifiquemos uma “saída” (estrondo característico das granadas ao serem disparadas por morteiros ou canhão sem recuo) começa-se a correr para o abrigo mais perto e simultaneamente a contar.

Chegando a 20...22...é deitar de imediato no chão e aguardar o rebentamento da primeira granada.

Foi exactamente o que fiz, perto das 20 horas, simplesmente, não me deitei no chão.

Ao contrário, no desespero de me abrigar, continuei a minha louca correria ás escuras até ao abrigo das transmissões (O batalhão tinha um electricista de dia permanente aos dois enormes geradores eléctricos, e quando começava um ataque ao quartel, imediatamente apagava todas as luzes excepto as do perímetro de arame farpado para detecção de aproximações por parte do IN).

 Quando ouvimos o estrondo simultâneo de duas “saidas”, eu e tantos outros que de momento tinha-mos ido à cantina, partimos como loucos em direcção dos abrigos.

Todos corriam, e em todas as direcções, no entanto. Não havia atropelos, a precipitação era grande, mas talvez o instinto de sobrevivência, levasse cada um pelo caminho mais curto e com o mínimo de obstáculos a retardarem a chegada ao refúgio, que parecia ficar distante milhas e milhas...isto mesmo com as luzes apagadas.

Sabia ser melhor deitar-me no chão, junto a uma vala ou parede e aguardar que se desse o primeiro rebentamento.

Inconscientemente não parei, nem sequer me deitei.

Quando circundava o edifício das transmissões, uma explosão medonha mesmo na minha frente ensurdecedeu-me e cegou-me por breves segundos, ao mesmo tempo que via um clarão enorme na direcção da oficina de pintura, misturado tudo com um cheiro intensivo a pólvora e “cordite”.

Apavorei-me, mas não parei.

Sabia que não podia parar, e agora que estava tão perto do abrigo era só mais um esforço.

Se conseguisse chegar depressa reduzia bastante a possibilidade de ser atingido pelos estilhaços.

Foi titânico o meu esforço.

Senti que tudo girava em meu redor e que enfim...tinha chegado a minha hora.

Já no alto passeio do edifício das TMS e preparando-me para fazer a curva em direcção á entrada...sempre no escuro, calculei mal as dimensões da parede e ao curvar, bati estrondosamente de frente contra a parede !!??

Com o impacto cai e cheio de dores na cara e no braço esquerdo, lá consegui escapar-me e continuar a correr, percorrendo os poucos metros que faltavam, desta vez na direcção certa.

Apesar de cheio de dores, a cara e braços esfolados, tão tranquilo me senti quando cheguei perto dos outros camaradas.

As explosões de granadas dentro do quartel eram às centenas (num dos vários ataques, foram referenciados perto de 200 rebentamentos)

Uns nus, outros em pijama  das mais diversas formas, todos tinham chegado ao ponto final da sua louca correria, o abrigo salvador.

O resto foi o que já nos habituamos a ouvir: As consecutivas “saidas” dos morteiros da nossa parte, correspondidas pelos rebentamentos de armas pesadas d’eles.

O cáus por fim terminou.

Esporadicamente ainda se ouviam rebentamentos que no entanto não conseguia já identificar, como sendo fogo nosso ou deles.

Apenas me limitei a saber o balanço final.

Infelizmente mais uma vez eles conseguiram alguns trunfos.

Sofremos dois mortos e vários feridos, alguns posteriormente evacuados para Bissau.

Continuo na mesma eterna inconstância, sem saber como tornar os dias o mais suportáveis possível.

Aguardo os acontecimentos, e tenho quase a certeza de que a próxima vez que voltar a abrir este “Diário” será para como de costume tentar passar para ele, tudo aquilo que me vai na alma, para assim, quem sabe...talvez, aliviar a carga imensa que carrego todos os dias, e que cada mês que passa mais faz doer.

Dois anos...24 meses...8760 dias...210.240 horas...neste inferno...neste maldito clima...nestes sobressaltos permanentes...neste arriscar a vida diário...com esta comida de merda, que por vezes nem a porcos se daria...é uma violência, uma desumanidade.

Para ter uma mãe Pátria que a isto me obriga e assim me trata e destroi...antes queria ser órfão !!

Nunca mais seremos os mesmos, findos estes malditos anos...

16 de Julho de 1968.................3 horas da manhã, no Centro Cripto                                                                           pág. 7 de 7

Ataque !!...Ataque !!...Ataque !!

Só esta medonha palavra tem de momento significado.

É ela que me vai corroendo a mente e o corpo...me faz definhar e morrer um pouco a cada dia que passa.

Não sei até que ponto posso chegar.

Até que altura continuo a suportar toda esta merda de vida, de incertezas de medos...cada vez como e durmo menos...cada vez bebo mais...

Se não fosse a responsabilidade do serviço, e ter que manter para o mesmo a cabeça e os sentidos sempre alerta, apanhava uma bebedeira que durasse toda a comissão...porra estou farto desta merda toda...

A continuação é impossível...penso já não mais conseguir transcrever o que sinto e me vai corroendo a alma....TERMINEI !!

Talvez um dia volte a abrir estas páginas.......ainda me faltam nove ou dez meses desta agonia lenta, uma eternidade de tempo...nunca mais vejo a minha querida Lisboa.

Que saudades de sentir outros odores...outras cores...aquelas fabulosas e lindas mulheres de mini-saia (abençoada Mary Quant), que tanto embelezam a minha terra.

Sim eu tenho um bairro onde nasci e uma terra minha...chamam-se: BA, Bairro Alto e Lisboa, não é nestes tons, nem com estes odores.

As pessoas não são desta cor...Não se vestem nem falam assim...Não se alimentam nem enterram os seus mortos assim...Não se olham como aqui...Não bebem, o que bebem aqui...não comem com as mãos...

Não nos sentimos estranhos, como aqui...Não se manifestam, como aqui...Não moram em casas como as de aqui...Comem legumes e frutas e carne com tamanhos normais, não como aqui, onde tudo é pequeno e raquítico...Não veneram o Deus d’aqui...nem andam cheios de mézinhas e “roncos”...

Não andam sempre de chinelos...Não cheiram como aqui...Falamos todos a mesma língua, com várias pronúncias que só a embelezam...Somos uma só raça, não como aqui...Posso amar muitas vezes, com quem, quando e onde me apetecer, aqui não...

Não queremos correr com os vizinhos, como nos querem correr daqui...Podemos acreditar que quando nos sorriem, é mesmo por satisfação e não por obrigação ou medo...Não alimentamos e apoiamos por grandes e egoístas interesses comercias, inconfessáveis e sorrateiramente, quem vai decerto matar um seu irmão amanhã, irmão esse, que ali está a milhares de quilómetros de casa, longe dos seus, passando privações, para o defender a  ele e aos seus interesses...

Não tenho, quando o sol entra no ocaso, ter de me enfiar em buracos debaixo de terra para me proteger de bombas...Não tenho que andar meio grogue com cerveja e ir alta madrugada para a cama, para não pensar nos medos em que vivo, como aqui...

Não tenho que receber ordens, sem ser de quem para isso me pagar, como aqui...Aturar tanta gente desinteressante e básica, como aqui...Andar de farda, como aqui...

Ter que fazer continências, que dizem ser um cumprimento, mas eu só cumprimento quem quero e de quem gosto, não como aqui...Não tenho que ver homens de vinte anos a comer mal, morrer, ficar em pedaços e meio loucos todos os dias, como aqui...Andar, correr e saltar sem estar rodeado de arame farpado...Dormir sem uma arma à cabeceira e granadas debaixo da cama...PORRA na minha Lisboa não é nada como aqui...

Que estou eu aqui a fazer com uma arma na mão ??!!

Na minha terra ninguém me obriga a lá estar...vivo nela e amo-a porque quero...porque gosto de tudo que ela contém e representa...mesmo do mau, por vezes gosto !!

Até um dia....se voltar a haver um dia....

JJ Op. Cripto     Tite – Guiné 1967-69

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