Velho Diário Incompleto Intróito e pág. 1 de 7
Intróito:
Por alusão de um grande amigo e ex-companheiro de armas, a
um seu Diário escrito na Guerra da Guiné nos anos 60, e que no regresso à
Metrópole, após dois anos de comissão, num rompante, decidiu larga-lo borda
fora do navio UIGE, lembrei que também eu tinha feito uma “ameaça de Diário”
exactamente na mesma época e local.
Muito procurei e lá o descobri nos recônditos de montes de
papelada e livros...
Eis umas breves notas explicativas.
Ficou pelo caminho esta tentativa de fazer um “Diário de
Guerra” na Guiné...começou tarde e terminou cedo !!
Estes textos não tem o mínimo de pretensões literárias, nem grandes
“desanrrincanços” de prosa, nem muita qualidade...mas são sinceros, porque
foram vividos intensamente e escritos com o coração !!
Estão bastante espaçados no tempo, porque não havia grande
paciência para a escrita, nem disso eu era muito amante.
Foram passados ao papel em ambiente de guerra, no quartel de
Tite, sempre nas madrugadas daquelas longas noites e com pouco mais de vinte
anos.
Até para casa e família, as minhas cartas eram escassas e
lacónicas.
Anos mais tarde, disso bastante me penitenciei, pois a ausência de noticias muito fazia sofrer meus
pais.
Sempre me exprimi com algum sucesso, por palavras e
“bonecos”.
Ao invés, confesso a falta de jeito com a pena, para narrar
no papel a catadupa e turbilhão dos meus pensamentos.
Não inclui relatos pormenorizados dos ataques do PAIGC que
sofremos, tendo-o no entanto feito em folhas de papel, com o intuito de mais
tarde os incluir num capítulo em separado “Ataques ao Quartel”
Infelizmente esses manuscritos levaram sumiço, o que é pena,
pois continham descrições pormenorizadas, medonhas e sofridas, com número de
mortos e feridos, estragos materiais etc., dos maiores ataques efectuados
durante dois anos.
Ao meu rigoroso e saudoso pai, que muito me ajudou e com
quem bastante “conflituava” naqueles tenros anos, a minha grata recordação.
Só mais adulto, o comecei a compreender e verdadeiramente a
amar.
Muito me apoiou sobre todos os aspectos, neste amargo
período da minha vida.
Ele sabia dar valor ao que eram as saudades e o ambiente de
guerra, pois como furriel miliciano de engenharia, tinha nos anos 40-42, também
passado pela Guiné e feito comissão na Ilha do Sal, Cabo Verde (a foto foi
tirada e colorida a aguarela por ele).
Sempre o vi, até à sua doença e ausência física, como um
líder, sempre a estudar e elevar-se profissionalmente.
Involuntariamente e com tristeza, cedo admiti, lhe ter dado
vários desgostos.
O seu grande sonho de ver os filhos Dê Rés; o “assentar”,
casar e constituir família; depois de casado, o não querer ter logo filhos; o
sair de casa pouco tempo após o regresso da Guiné; o nunca acabar o curso de
programador no Centro Informático da RTP que ele chefiava, ficando-me pelo de
Mecanógrafo, entre outras avarias pós Guiné, n’uns loucos anos, em que vivia
como se fosse o último dia – noite, melhor dizendo - da minha vida.
Mesmo assim, foi esse curso informático, que me proporcionou
o primeiro emprego a sério pós Guiné, e onde curiosamente me metia com uma
colega que não podia comigo nem um bocadinho, que tinha uns olhos lindos, e que
infelizmente para ela, acabou por comigo casar e piedosamente me aturar com
“pachorra” de santa há... 37 anos.
37 anos que me parecem 37 dias !!...Gosto mais dela do que
torradinhas do meio !!
Ainda sobre o pai: Todos sabemos e facilmente se adivinha o
que seria naquele tempo e condições, a alimentação da “soldadesca”.
Quando em comissão no Ultramar, era-mos obrigados a deixar
cerca de metade do vencimento a um familiar na Metrópole, recebendo na zona
operacional o restante.
Como não conseguia tragar a comida do quartel, passava o
tempo a “lutar pela vida” ora comendo no “Branco” ora alinhando nos petiscos
que os camaradas arranjavam.
Claro que isso trazia custos acumulados, e como o que recebia
não chegava, passava a vida a pedir ao pai para me enviar a “pensão” de que ele
era fiel depositário. O dinheiro da
Metrópole tinha uma mais valia, pois “cambiávamos” por mais 10% em “patacão” da Guiné.
Esgotei a pensão, mas ele nunca falhava com o apoio
monetário, dizendo que lhe pagaria quando findo o tormento, já em “casa”,
tivesse a vida organizada e começasse a trabalhar.
Quando finalmente me vi regressado à casa paterna, com que
alegria ele me dava as novidades....
A primeira refeição foi frango assado picante com bata frita
às rodelas e esparregado salteado com alho (que eu adorava), depois o nosso
quarto remodelado, nova televisão, obras na nova casa...tudo preparado para a
recepção do” filho pródigo”.
Por último - surpresa maior - a papelada para abrir uma
conta bancária com todo o dinheiro da pensão de dois anos, que supostamente me
teria enviado para a Guiné, mais uma verba que ele dizia ser de “juros do
capital investido” !!
Fiquei espantado !!
Nunca mais esquecerei deste gesto. Muitos outros de grande generosidade se
seguiram pelos largos anos que ainda viveu.
A minha singela homenagem, ao grande homem que me vincou o
carácter e do qual muito herdei.
JJ – Maio 2009
Glossário:
Bolanha - Grandes extensões de água pantanosa que
serpenteiam por toda a Guiné-Bissau, onde se planta o arroz.
Tabanca - Aglomerado de casas das populações nativas em
barro e colmo.
“Branco” - Único comércio/restaurante/bar, existente em
Tite, propriedade de um Metropolitano branco.
Patacão - Dinheiro na gíria da Guiné.
PAIGC - Partido Africano para Independência Guiné e Cabo
Verde, designação do único grupo de guerrilha que nos combatia na Guiné.
IN - Abreviatura militar para Inimigo
NT - Abreviatura militar para Nossas Tropas
“Saidas” - Estrondo característico dos disparos de granadas
de Morteiro e Canhão sem recuo.
Morteiro - Lança granadas vertical de infantaria
Canhão sem recuo - Lança granadas de infantaria, podendo ser
montado num Jeep.
RPG7 - Lança Granadas Foguete
Roncos - Espécie de amuletos da boa sorte, normalmente em
forma de cinto ou colar, usados principalmente pelos guerrilheiros, como
“protecção”.
Também se designavam por Ronco, as festas nativas.
Choro - Comemorações nativas fúnebres.
Tite 4 de Novembro de
1967............................................3,5 da manhã no Centro Cripto
Não será um diário o que pretendo fazer.
Não é isso que quero ao começar a analisar e mais
propriamente ainda, conservar nas páginas em branco de um insignificante livro.
Sei não ser este o meio mais usual para guardar ideias (ou
talvez seja...) mas que me importa o cenário, se ao deixar transparecer um
pouco de mi próprio me torna mais fácil o continuar sempre igual e terrível dos
dias que amargamente terei que aqui passar.
Mais um dia, igual decerto ao que há oito meses atrás marcou
o começo pouco risonho de mais um marco da minha vida.
Será um dia simples ??!!...ardentemente desejo que seja na
realidade um dia simples.
Só aqui nesta terra dos longos silêncios e das vistas largas
pelas Bolanhas, sinto a felicidade do recordar das coisas pequeninas e sem
história, mas que me faziam feliz.
Sei que poderá ao contrário ser também um dia de desgraça,
catástrofes e morte.
Portanto um dia escuro como escuro é também o negro do luto,
e amiúde, o tom da minha alma.
Sei que poderá ser amargo e negro, em que mais uma vez sinta
o terror que já tantas vezes senti.
O mais desesperante, é a permanente incógnita, quando o dia
começa a morrer e a negrura da noite cai sobre nós, o eterno receio de mais um
ataque.
Será hoje ? e quando ? durará muito ?...
Apercebemo-nos que o dom auditivo se desenvolveu em todos
nós de uma forma estranha.
Conseguimos captar o mais estranho som a quilómetros de
distância, o que nos proporciona as rápidas fugas para os abrigos ou postos de
combate, logo que se ouvem ao longe os estrondos das “saídas”, denunciando o
começo de mais um ataque.
Mas que posso fazer ??
Não estou eu, bem como tantos, condenado às intempéries de
um futuro tão sombrio ?
Tão incerto como tudo o que conhecemos, um futuro que será
tudo menos: risonho, feliz e tranquilo, um futuro que ficara talvez na minha
memória como um espaço de tempo tão doloroso e amargo, tão terrífico que só a
simples lembrança me causará medo.
Tanto desejo que isso não aconteça que uma simples esperança
se vai avolumando em mi de uma maneira tão categórica que já se tornou uma
obsessão.
Eu quero que o dia 1 de Novembro (aniversário da mãe( seja o
desfolhar natural de mais uma folha de calendário.
Quero que quando esta mesma folha tombar com a sua história
passada, não seja uma data para fixar.
O que há tempos atrás me parecia uma criancice, naturalmente
hoje é um ardente desejo.
Sinto que o mundo de fantasia e de boa vida vivida, repleto
de esperanças e grandes planos, hoje, não está morto, mas sinto que está
sobremaneira transformado.
Transformado com a necessidade premente de uma aniquilação
total e negligente para facilitar o alheamento da confusão em que me vejo.
Recordo que no princípio da comissão, quase todas as minhas
noites eram um manancial de belos sonhos e até de prelúdios mais ou menos
longos e felizes.
Tudo revivia, com a plena certeza de apenas os interromper
por um tempo.
Hoje, passados 212 longos e penosos dias em Tite, que se
arrastam, essa convicção já nem sequer me torna feliz.
Sobrepoe-se à certeza bela e realizável, o monstro enorme e
horrendo da incerteza e dos contínuos pavores.
Tento não desanimar...
Contudo tão difícil se torna já a ideia de que o tempo que
imperiosamente ainda me resta de sofrimento nesta maldita, mas também tão bela
terra, terá que passar tão lentamente que a sua lentidão me causa horrores.
Não são os dias em si que me atormentam.
É sim o que eles também contém e conterão, o que definem e
hão de definir com o seu inconstante nascer e morrer.
Relembro hoje a data de 19 de Julho de 1967, o nosso
primeiro ataque em grande escala.
Relembro, ainda mais recentemente, o dia 31 de Outubro e 1
de Novembro.
Quantos dias como estes ainda terei mais que passar ?
Quantos medos arrepios sentirei percorrerem-me todo o corpo até o sentir gelado
?
Quem ganhará na realidade com esta guerra ? eu só vejo
perdas...principalmente de vidas e de carácter, perante as durezas da guerra.
Tantas perguntas e nenhuma resposta !!
Tantos horrores, tanto sangue e morte ainda terei que
presenciar para finalmente o dia glorioso do regresso se impor ao que tanto me
torturou e fez sofrer.
Quero logo que ponha os pés no meu amado BA e a Lisboa que
eu amo, apagar da memória estes malditos dois anos de Guiné.
A constante de dois longos anos, é e será sempre tudo o que
não quero, mas que forçosamente tenho que suportar.
Tudo o que nunca imaginei poder ser verdade e concluí
corresponder à verdade, à imagem real de factos sempre presentes em quem os
passou e em quem os passa para mais tarde os abandonar e trocar por tudo o que
são os “sonhos lindos”.
Mesmo esses que tudo sofreram e agora tudo gozam, de certo
se lembram dos que, e para quem, planos futuros lhes serviram a eles de
mortalha e aos outros de lágrimas e dor.
“Na paz os filhos enterram os pais, na guerra os pais
enterram os filhos”...tanta verdade esta frase contém !!
Já por duas vezes vi camaradas de armas morrerem, e por duas
vezes senti que transpareciam em mim todas as quimeras por eles ansiadas e tão
cedo a morte lhas ceifou nesta maldita Guiné.
Dura experiência essa que passei.
Duras horas também as que se seguiram.
É nesses momentos que se sente o terror, a incógnita e obrigatoriamente
uma pergunta se enraizou no meu cérebro que sinto já tão doentio: Quando será a
minha vez ? será que também eu vou ter este fim? e se fico sem pernas - ainda
tenho em mente passados tantos anos as imagens do nosso camarada apanhado por uma
mina na Estrada de Nova Sintra, que lhe amputou ambos os braços e pernas -,
cego, condenado a uma cadeira de rodas para toda a vida ?
Prefiro a morte, a ficar por metades, estilhaçado e
dependente da caridadesinha alheia.
Nunca !!....
Quando por fim me volto a sentir mais tranquilo, acredito
que a vida me voltará a sorrir e serei de novo o insignificante mas feliz
humano que só com 22 anos, tanta desumanidade já viu, viveu e teme, ainda
viverá...
Sei que tudo terminará, e tudo dentro de alguns longos meses,
não parecerá talvez, mais que um simples sonho mau, o qual terminou quando
acordei e vi frente a mim os rostos felizes de todos os que me são queridos, e
a janela aberta para a vida convidando-me a entrar no seu seio de frivolidades,
incertezas também, alegrias e nunca mais
ódios.
Vou esgotando dia a dia nesta vermelha terra, a capacidade
de voltar a odiar !!
Tite 12 Novembro 1967
.........................................................2 da manhã no quarto e
Centro Cripto pág.
2 de 7
Não recordo quando teria sido a última vez que peguei neste
“Diário”, contudo não vejo também qual o valor que possa ter, fixar uma data,
que por si só não tem o interesse que tantas outras ao contrário possuem.
Recordo vagamente que temia o que na realidade aconteceu.
Mais uma vez...momentos tão desesperantes...
Tudo começou como quase sempre.
Era dia 1 de Novembro, dia dos anos da mãe Lena e tantas
vezes dela me lembrei, que se foram tornando um bálsamo esses mesmos momentos.
Todos esperava-mos que durante o período de fins de Outubro
e meados de Novembro, acontecesse qualquer coisa que pudesse ser adicionado a
tantas outras congéneres.
Fomos avisados na madrugada deste dia que os “turras”
(designação na gíria militar em referência aos guerrilheiros, a nós eles,
chamavam-nos TUGAS) se encontravam em Tite de Baixo e Tite Mancanha, em dois
“bigrupos” (equivalente ao nosso Grupo de Combate) preparados e equipados com
artilharia pesada de Infantaria, para atacar naquela noite o quartel de Tite.
O informador referiu também que o PAIGC, na véspera tinha
arrebanhado nas tabancas próximas, várias dezenas de nativos, que como era
hábito, serviriam de carregadores de munições e armas pesadas para a realização
do ataque.
Com a rapidez costumada nestes momentos, logo se preparou a
defesa.
Assim que soube a notícia, fui para junto da Arrecadação de
Material de Guerra, aproveitando a ocasião para ajudar o Palma a abrir cunhetes
de munições e preparar algumas metralhadoras extras, granadas de morteiro etc.
para logo que necessário entrarem em acção.
Tudo estava preparado.
Todos a postos.
Reforço dos postos avançados com mais pessoal e munições, as
duas Auto-metralhadoras Daimler a postos junto à porta de armas para pronta
saída, os não operacionais directos abrigados nos respectivos abrigos, luzes
desnecessárias apagadas e o mortal silêncio dos momentos de grande expectativa.
O tempo foi decorrendo com uma lentidão mortal, tornando a
espera num crescendo enervante, mais do que nunca era penosa a espera, e a
cabeça estava num turbilhão.
Sentia um medo enorme, e fumava sem parar. Estava de serviço
e não sai do Centro Cripto, pois embora ligeiramente protegido com sacos de
areia por cima do teto, tinha-mos uma mesa de trabalho enorme e super grossa de
madeira de Bissilon muito rija que dava alguma protecção.
Sei que durante momentos, algo indescritível, um nervoso
miudinho, me impedia de raciocinar direito.
O arrastar penoso do tempo era uma tortura difícil demais de
suportar.
Reflectia-se em todos uma falta de animo, neles próprios e
nos outros, que contribuía para o desanimo geral e falta e confiança mutua.
Tanto tempo passou !!
Nada se ouvia que nos pode-se dar uma ideia de como, quando
e vindo de que direcção, seria o ataque.
Nada que desse azo a que cada um desse largas ao ódio
contido dentro de si próprio.
Mais uma vez o reacender do instinto animal da lei da guerra
“matar para não ser morto”...
Nada que fizesse as culatras levarem a ração de morte que a
cada um cabia, pela implacável mão drástica do destino sempre incansável quando
semeia a morte.
Tudo continuava quase normal...
Mas foi passando o tempo...nada...nada...nada...
Óh! Que horrível ansiedade.
Porque nada acontecia ? porque não começavam tudo aquilo
para que tinham vindo, porque não concretizavam todos os seus intentos ? porque
não COMEÇAVAM COM AQUELA MERDA, PORRA ? Que estavam a tramar para ainda não
terem começado com os momentos de pavor ?
Já passava das duas horas da manhã, quando ouvimos duas
longas rajadas de metralhadora que passaram por cima do quartel, da PPSH (a
costureirinha) provavelmente.
Devia mesmo ser a “costureirinha” pois era a única arma
automática do PAIGC que operava com carregadores circulares de 75 munições, daí
as longas rajadas.
Começou então um verdadeiro pandemónio, que de antemão tanto
temia...começou o inferno, a destruição e morte...
A nossa reacção foi imediata e no ar ficou a pairar o fumo,
o fogo de morteiros, o matraquear de armas ligeiras, como que um convite a
morrer.
Uma gentileza gratuita; Morrer para deixar de sofrer, quase
vale a pena !!!
Contando os longos momentos pelo matraquear convulsivo e
macabro das nossas metralhadoras, o estrondo de saídas dos nossos morteiros,
comecei a contar as contas do meu rosário pagão, das minhas recordações, e mais
uma vez nessa noite me lembrei de minha tão querida mãe.
Vi nitidamente a sua imagem esfumada à minha frente por
segundos !! É sempre a imagem da nossa mãe que em teatros de guerra, nos
acompanha nos últimos momentos de vida. Isso já foi relatado em vá´rias
ocasiões.
Fazia hoje anos, mais um aniversário na minha querida mãe
que tanto adorava, e que tanto me protegeu, apoiou e escondeu de meu querido,
mas tão ríspido Pai.
Parece ironia, mas o presente de anos foi para mim.
Sei apenas que nunca da minha memória será esquecido o dia 1
de Novembro de 1967.
Os ataques feitos pelo PAIGC ao quartel eram efectuados com
método e muito bem planeados.
O maior perigo para as NT eram os primeiros rebentamentos
dentro do quartel, pois invariavelmente atingiam sempre zonas vitais.
O porquê, era simples.
Os ataques do PAIGC só se efectuavam já noite, para que a
nossa força aérea não perseguisse os guerrilheiros na sua fuga pós ataque para
as bases instaladas a quilómetros do local, a Norte no Senegal e a sul na
Republica da Guiné.
O quartel era naturalmente super visível à noite a uma
grande distância, e toda a iluminação exterior do arame farpado demarcava em
pormenor o perímetro do mesmo.
Com os ataques feitos na base de morteiros e canhões sem
recuo, armas pesadas de Infantaria, tinha o IN todo o tempo do mundo para se
instalar a alguns quilómetros de distância, nas posições operacionais mais
convenientes.
As luzes, bem como mapas desenhados do quartel ??!!
permitia-lhes referenciar e regular os aparelhos de pontaria com a máxima
precisão.
Com a sucessão do disparo de dezenas, por vezes centenas de
granadas, com os recuos naturais, as armas iam alterando as cotas de tiro, e as
granadas caiam mais deslocadas dos centros nevrálgicos, fazendo no entanto
sempre bastantes estragos.
O mapa do quartel de
Tite capturado, entre outros documentos, a um guerrilheiro morto, fora
decerto fornecido pela irmã de um comerciante nativo, que se soube, mais tarde,
ser informadora do PAIGC e passar a vida a espiar as NT.
É curioso como nos momentos maus e verdadeiro sofrimento, o
pensamento nos foge, procurando a imagem bela da pessoa que mais amamos.
É sempre a imagem da nossa mãe quem avidamente procuramos e
é pensando nela que muitas vezes os olhos de fecham para não mais se
abrirem...é a última vontade, o último agarrão à vida que se esfuma, o último
consolo para quem pouco pedia e até a própria vida deu, sem o querer e sem
saber muito bem para quê...
Tudo findou...tudo findou como se nada na realidade se
passasse.
Não houve feridos nem mortos desta vez.
Não os houve felizmente para todos. Eles não fizeram um
ataque formal como de costume.
Tudo o que temia-mos, desta vez não foi avante.
O que fizeram, comparado com o que era hábito, foi mais uma
vez um simples espicaçar dos nossos nervos.
Volta e meia, e mesmo durante o dia ouviam-se rajadas por
cima do quartel em tom de desafio, e para provocar a instabilidade nas NT.
Logicamente todo o pessoal desatava numa correria para
abrigos e postos de combate.
Sempre para nos darem cabo da cabeça...eles sabiam ser
eficaz esta guerra psicológica...
Por sorte e feliz acaso, não tivemos ocasião de ver
repetir-se o espectáculo a que já nos acostumamos, mas que de cada vez se torna
sempre mais desencorajante.
Quando nos avisaram do iminente ataque, o nativo, elemento
da população, foi instruído para nos levar a cair numa emboscada já preparada.
Por isso mesmo, e esperando a nossa saída do quartel para
montar-mos emboscadas, tinham já eles colocado minas e armadilhas com granadas
na estrada de acesso a Tite de Baixo e Tite Mancanha.
Com um pavor medonho imagino a carnificina que seria.
E por mi vi passar o dia em que na estrada de Nova Sintra
rebentou uma mina.
Revejo a correria dos
“jipões” com os feridos, uns para a enfermaria, outros para a pista onde os
helicópteros Alouette III os viriam evacuar.
O seu destino era o fatídico hospital Militar de Bissau, e
nos casos ainda de maior gravidade, a evacuação para o Hospital Central de
Lisboa, o que para os sobreviventes era quase preferível, e uma sorte, para não
suportarem uma guerra tão longa e arrasante.
Destes hospitais por onde milhares de militares passaram e
de onde tantos já saíram, mas não para continuarem o laborioso dia-dia que lhes
é imposto, que lhes é obrigatório cumprirem.
(Sabia-se que dentro da eterna política do esconder e
camuflar a Guerra do Ultramar, foram dadas instruções rigorosas para que os
feridos graves evacuados para a Metrópole, só fossem desembarcados no Aeroporto
de Lisboa e enviados para o Hospital Militar da Estrela, de noite, muito
discretamente, e no máximo secretismo)
Sei que tudo o que mais temo não ficará por aqui.
Sei também que tudo o que é francamente mau, tem tendências
predominantes e que inevitavelmente se impõe sempre.
Que posso fazer ?
Estará na minha mão, sozinho regenerar o Mundo ? Não o
creio, porque é impossível...
Até ao próximo escrito, que não sei quando será, ou se o
conseguirei fazer.
Tite 25 de Novembro de
1967........................................ 3,10 da manhã no Centro
Cripto
pág. 3 de 7
Nada de especial consumou mais um dia sem acontecimentos
relevantes (felizmente, por um lado), mais um dia sem história e mais um dia a
pensar se “virão hoje à noite ?”.
Não sejam pequenos nadas a proporcionarem raros momentos de
boa disposição e não seria tão menos penoso a descida que termina quando também
terminar o monótono desfiar de recordações e mágoas, mas com o doce cenário de
um outro local, outras gentes e outro bulício, que não sejam estes.
Às vezes vejo toda a beleza desta terra, do habitat que me
rodeia com agradável prazer, esquecendo o quanto também a odeio, mas fico
estarrecido perante tanta beleza natural e principalmente o cheiro intenso,
doce, único, desta terra vermelhão.
Tantos momentos já me senti num extase completo e magnifico
ao estar longos períodos a contemplar o panorama tão belo de um por de Sol, de
uma árvore mais exótica, de um pequenito nativo chapinhando na água turva,
enlameada da Bolanha, na naturalidade com que a mãe dá o seio grande , negro e
belo à criança que parece nunca estar saciada, ao silêncio imenso das enormes
extensões de Bolanhas, salpicadas com algumas árvores isoladas, como que
envergonhadas de si próprias e da sua solidão, dos maravilhosos pássaros de
cores celestiais.
Nunca imaginei tanta poesia, nem quadros tão belos que
perante os meus olhos desfilam, fazendo esquecer o verdadeiro sentido de estar
ali...a guerra...
Se conseguir sair daqui inteiro, se esta maldita guerra
terminar a contento dos dois lados, tenho que cá voltar daqui a uns anos, como
civil, para então sim, me embriagar de toda esta beleza africana.
Encher bem os pulmões destes doces odores.
No entanto são tão poucos esses momentos e cada vez menos
costumados, que sinto fugir-me aquele tão grande amor pelo que é belo e vale a
pena admirar.
Sou por vezes um romântico...
Sei que nunca me chamariam de tal, porque sei nunca ter dado
a adivinhar a alguém um sentimento que teimo em esconder.
Não que o esconda por vergonha ou medos, mas apenas porque
só o vejo na realidade realizado dentro de mi próprio.
Fechado na caixa de ouro em que nasceu e que forçosamente
morrerá...
Mesmo n’uma constante luta, penso que só momentos como estes
me podem tirar o peso também constante de uma vida atormentada e de medos,
apenas constituída por sobressaltos e um terror de terminar antes de começar.
Este continuar a poder
abrir a minha caixa de ouro, sempre que quiser, para somente a fechar
quando sentir ter conseguido mais um lenitivo para as horas, minutos e segundos
em que sinto o fel amargo do desanimo de mim se apoderar...
Que a vida continue mais um pouco, para me mentalizar para a
morte !!!
Tite 13 de Janeiro de 1968................................3
horas da manhã, no C. Cripto
pág. 4 de 7
São 3 horas da manhã.
Mais um período de serviço está prestes a terminar.
Como a maior parte das vezes, foi um dia movimentado no
tráfego das “secretas”.
Infelizmente será um dia memorável no mau sentido para
tantos, o que para mi não passou de mais um.
Mais um a juntar a tantos sempre tão iguais desta maldita
guerra.
Empada e o destacamento de Gubia, foram atacados
simultaneamente.
Quase já me habituei a saber estas desgraças.
Penso o que terá sido a vida dos outros, dos que hoje deram
decerto o máximo deles próprios para poderem garantir a integridade de si e
também dos companheiros.
Gubia tem tido azar !
Três dias seguidos de ataques.
Não podem ter um pouco de sossego.
Para eles vai a minha grande admiração. Aqui também sabemos
o que isso é ! aliás, toda a Guiné sabe o que isso é !!...
Espero o dia em que também voltemos a viver o tempo
incontável que demora esse cáus.
Sinto que não falta muito para de novo reviver momentos como
os de 19 de Julho, 6 Novembro e tantos outros, que já vou esquecendo as datas.
Esperemos...
Tite 05 de Abril de
1968...............................................3 da manhã no Centro
Cripto
pág 5 de 7
Tanto se passou desde a última vez que me dediquei a fazer
mais um pouco de simples prosa no meu “Diário”.
Muitas novidades, muitos feridos e mortos, muitos costumados
pesadelos...
Não posso deixar de recordar a madrugada do dia 3 de
Fevereiro de 68.
Foi o dia fatídico de Bissassema. O dia em que mais ainda me
fez sofrer...
Já muito vi n’um ano de Guiné já vi a morte algumas vezes
marcar presença a poucos metros, mas nunca tive tão apavorado como daquela vez.
Volto em pensamento à noite
de 2 de Fevereiro...
Estava no posto de rádio a jogar o meu pseudo Ping-Pong
(bola contra a parede do posto de rádio) que normalmente me retinha por uns
momentos ocupado, quando o furriel Cavaleiro entrou bastante excitado ??!!
Disse-me. – Justo, está quieto com isso, pois ouvem-se
fortes rebentamentos na direcção de Bissassema e é provável que seja ataque à
nossa malta de lá.
Saí, e de facto comprovei os medonhos rebentamentos,
trazidos por vento favorável.
Tanta vez tinha-mos ouvido esta “música” que já não era de
maneira nenhuma uma novidade, mas dessa vez causaram-me forte impressão, pela
enorme quantidade e por ouvirem-se com uma nitidez impressionante, o que não
era natural, mesmo com vento favorável, pois Bissassema ficava a mais de 15
kms.
Logo o pressentimento de que algo de anormal se passaria, me
assaltou, recordo que me senti bastante estranho, facto que me admirou por ser
tão forte.
Não parecia uma simples flagelação, mas mais um fortíssimo
ataque.
Uma longa hora durou o pandemónio a que assistimos sem
qualquer notícia, ou comunicação via rádio que nos fosse benéfica.
O contacto via rádio era praticamente impossível, pois os
DH5 só eram ouvidos durante o dia e à noite deixavam completamente de se ouvir.
Depois de findos os tramites normais em casos de ataque
(tentativa de reforço, comunicação por mensagem Zulu (grau máximo de prioridade
via rádio) para Bissau, tentei finalmente
dormir.
Não consegui com facilidade conciliar o sono, embora me
sentisse exausto.
Pensei em coisas horrorosas o que contribuiu para mais
dificilmente ainda conseguir a tranquilidade mínima para conciliar o sono
Hora e meia, tinha durado apenas o meu sono.
Acordei com o barulho provocado pela entrada de roldão do
alferes Carvalho pelo nosso quarto dentro, n’uma excitação que na altura não
compreendi.
Falava, ou melhor , gritava ordens, pragas e gesticulava
imenso.
Poucos minutos bastaram para me aperceber do que se passava.
...Bissassema tinha sido tomada e ocupada pelas tropas do PAIGC, e a s nossas
forças retiraram desordenadamente em consequência de numeroso grupo do IN, que
tinha atacado com uma força e efectivos enormes.
Tinha-mos sido avisados pelo Gomes Furriel de TMS, que tinha
ido bem como o Contino Op. Cripto e o Capitulo Rádio-Telefonista, formar a
secção de TMS e Cripto no destacamento para contacto com o nosso Batalhão.
Dar um exemplo do aspecto do Gomes é dificil.
Branco, mortalmente branco, tremendo e mal conseguindo
articular as palavras que lhe saiam
inaudíveis, conseguiu por alto relatar alguns pormenores do que foi uma
das piores derrotas militares sofridas
pelas nossas forças.
Pelas primeiras impressões, temia-se que tanto o Contino
como o Capitulo tivessem caído nas mãos dos “turras”.
Mais tarde tivemos a confirmação, quando de manhã começaram
a chegar os que tinham conseguido iludir a vigilância dos guerrilheiros e
puderam regressar a Tite.
Chegaram fugidos ao Enxudé, vindos da vários caminhos, pois
poucos conheciam o caminho exacto, tendo também que evitar caminhar em direcção
que lhes fosse desfavorável por levar a acampamentos do IN.
O que vi quando ao procurar noticias de tudo e todos os
camaradas, será uma imagem que nunca mais esquecerei.
Rostos que tinha visto sorrir, estavam marcados pelos vincos
profundos da dor, do desespero e desanimo.
As lágrimas que lhes vi na face, os olhos vermelhos e
inchados, cobertos de lama e na maioria descalços e rotos, parecendo figuras de
filmes de terror, com forças apenas para agarrarem desesperadamente a G3, a sua
própria e única salvação para manter a vida, quando em redor somente a morte.
Para mais esses, que vi entrarem à porta de armas do quartel
de Tite, na manhã de 3 de Fevereiro de 1968 vão as lágrimas que não derramei,
mas que verdadeiramente senti...
“3 Fev 68 – Ataque Bissassema
Resultado da operação feita na véspera em que fizeram parte
CCAÇ 2314; CART 1743, Pelotão Sapadores da CCS e 3 pelotões de milícia nativa.
Em consequência do forte ataque o IN ocupou Bissassema,
caindo prisioneiros o Contino, Capitulo e Alferes Rosa.
Na retirada desapareceram o Furriel Sousa e um Sargento da
milícia de Tite.
Mia tarde o Sargento foi encontrado morto no Rio Geba.
O cadáver foi recuperado sendo impossível o mesmo no que
respeita ao Furriel Sousa do Pelotão de Morteiros.
Foram ouvidos na rádio Konacry (rádio oficial e de
propaganda do PAIGC, situada na República da Guiné) o Contino, bem como o
Alferes Rosa e o Capitulo.
Em vários ataques posteriores à reocupação de Bissassema
pelas nossas tropas, foram mortos 22 guerrilheiros e apanhado diverso material
de guerra.
Um ferido IN veio para Tite, tendo morrido dias depois em
virtude dos ferimentos”.
Tite 02 de Março de
1968------------------------------------2,40 da manhã, no Centro Cripto
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Não sei bem como começar a descrever mais um infindável
número de factos, já macabros pela própria forma como decorreram.
Mais um daqueles costumados momentos maus.
Não sou muito claro quando digo momentos maus, porque cada
segundo que aqui passo nesta terra, não é senão um suplício tremendo. – Vou
chamar-lhes antes, os piores momentos !!
Comecei outro contar desenfreado até 22 no dia 2 de Março de
68...parece talvez anedota correr e contar, mais parece de maluquinhos, no
entanto, podemos salvar a vida com este simples suceder mental e rápido de
algarismos.
Tem uma justificação prática e bastante útil este sistema.
Logo que identifiquemos uma “saída” (estrondo característico
das granadas ao serem disparadas por morteiros ou canhão sem recuo) começa-se a
correr para o abrigo mais perto e simultaneamente a contar.
Chegando a 20...22...é deitar de imediato no chão e aguardar
o rebentamento da primeira granada.
Foi exactamente o que fiz, perto das 20 horas, simplesmente,
não me deitei no chão.
Ao contrário, no desespero de me abrigar, continuei a minha
louca correria ás escuras até ao abrigo das transmissões (O batalhão tinha um
electricista de dia permanente aos dois enormes geradores eléctricos, e quando
começava um ataque ao quartel, imediatamente apagava todas as luzes excepto as
do perímetro de arame farpado para detecção de aproximações por parte do IN).
Quando ouvimos o
estrondo simultâneo de duas “saidas”, eu e tantos outros que de momento
tinha-mos ido à cantina, partimos como loucos em direcção dos abrigos.
Todos corriam, e em todas as direcções, no entanto. Não
havia atropelos, a precipitação era grande, mas talvez o instinto de
sobrevivência, levasse cada um pelo caminho mais curto e com o mínimo de
obstáculos a retardarem a chegada ao refúgio, que parecia ficar distante milhas
e milhas...isto mesmo com as luzes apagadas.
Sabia ser melhor deitar-me no chão, junto a uma vala ou
parede e aguardar que se desse o primeiro rebentamento.
Inconscientemente não parei, nem sequer me deitei.
Quando circundava o edifício das transmissões, uma explosão
medonha mesmo na minha frente ensurdecedeu-me e cegou-me por breves segundos,
ao mesmo tempo que via um clarão enorme na direcção da oficina de pintura,
misturado tudo com um cheiro intensivo a pólvora e “cordite”.
Apavorei-me, mas não parei.
Sabia que não podia parar, e agora que estava tão perto do
abrigo era só mais um esforço.
Se conseguisse chegar depressa reduzia bastante a
possibilidade de ser atingido pelos estilhaços.
Foi titânico o meu esforço.
Senti que tudo girava em meu redor e que enfim...tinha
chegado a minha hora.
Já no alto passeio do edifício das TMS e preparando-me para
fazer a curva em direcção á entrada...sempre no escuro, calculei mal as
dimensões da parede e ao curvar, bati estrondosamente de frente contra a parede
!!??
Com o impacto cai e cheio de dores na cara e no braço
esquerdo, lá consegui escapar-me e continuar a correr, percorrendo os poucos
metros que faltavam, desta vez na direcção certa.
Apesar de cheio de dores, a cara e braços esfolados, tão
tranquilo me senti quando cheguei perto dos outros camaradas.
As explosões de granadas dentro do quartel eram às centenas
(num dos vários ataques, foram referenciados perto de 200 rebentamentos)
Uns nus, outros em pijama
das mais diversas formas, todos tinham chegado ao ponto final da sua
louca correria, o abrigo salvador.
O resto foi o que já nos habituamos a ouvir: As consecutivas
“saidas” dos morteiros da nossa parte, correspondidas pelos rebentamentos de
armas pesadas d’eles.
O cáus por fim terminou.
Esporadicamente ainda se ouviam rebentamentos que no entanto
não conseguia já identificar, como sendo fogo nosso ou deles.
Apenas me limitei a saber o balanço final.
Infelizmente mais uma vez eles conseguiram alguns trunfos.
Sofremos dois mortos e vários feridos, alguns posteriormente
evacuados para Bissau.
Continuo na mesma eterna inconstância, sem saber como tornar
os dias o mais suportáveis possível.
Aguardo os acontecimentos, e tenho quase a certeza de que a
próxima vez que voltar a abrir este “Diário” será para como de costume tentar
passar para ele, tudo aquilo que me vai na alma, para assim, quem
sabe...talvez, aliviar a carga imensa que carrego todos os dias, e que cada mês
que passa mais faz doer.
Dois anos...24 meses...8760 dias...210.240 horas...neste
inferno...neste maldito clima...nestes sobressaltos permanentes...neste
arriscar a vida diário...com esta comida de merda, que por vezes nem a porcos
se daria...é uma violência, uma desumanidade.
Para ter uma mãe Pátria que a isto me obriga e assim me
trata e destroi...antes queria ser órfão !!
Nunca mais seremos os mesmos, findos estes malditos anos...
16 de Julho de 1968.................3 horas da manhã, no
Centro Cripto
pág. 7 de
7
Ataque !!...Ataque !!...Ataque !!
Só esta medonha palavra tem de momento significado.
É ela que me vai corroendo a mente e o corpo...me faz
definhar e morrer um pouco a cada dia que passa.
Não sei até que ponto posso chegar.
Até que altura continuo a suportar toda esta merda de vida,
de incertezas de medos...cada vez como e durmo menos...cada vez bebo mais...
Se não fosse a responsabilidade do serviço, e ter que manter
para o mesmo a cabeça e os sentidos sempre alerta, apanhava uma bebedeira que
durasse toda a comissão...porra estou farto desta merda toda...
A continuação é impossível...penso já não mais conseguir
transcrever o que sinto e me vai corroendo a alma....TERMINEI !!
Talvez um dia volte a abrir estas páginas.......ainda me
faltam nove ou dez meses desta agonia lenta, uma eternidade de tempo...nunca
mais vejo a minha querida Lisboa.
Que saudades de sentir outros odores...outras
cores...aquelas fabulosas e lindas mulheres de mini-saia (abençoada Mary
Quant), que tanto embelezam a minha terra.
Sim eu tenho um bairro onde nasci e uma terra
minha...chamam-se: BA, Bairro Alto e Lisboa, não é nestes tons, nem com estes
odores.
As pessoas não são desta cor...Não se vestem nem falam
assim...Não se alimentam nem enterram os seus mortos assim...Não se olham como
aqui...Não bebem, o que bebem aqui...não comem com as mãos...
Não nos sentimos estranhos, como aqui...Não se manifestam,
como aqui...Não moram em casas como as de aqui...Comem legumes e frutas e carne
com tamanhos normais, não como aqui, onde tudo é pequeno e raquítico...Não
veneram o Deus d’aqui...nem andam cheios de mézinhas e “roncos”...
Não andam sempre de chinelos...Não cheiram como
aqui...Falamos todos a mesma língua, com várias pronúncias que só a embelezam...Somos
uma só raça, não como aqui...Posso amar muitas vezes, com quem, quando e onde
me apetecer, aqui não...
Não queremos correr com os vizinhos, como nos querem correr
daqui...Podemos acreditar que quando nos sorriem, é mesmo por satisfação e não
por obrigação ou medo...Não alimentamos e apoiamos por grandes e egoístas
interesses comercias, inconfessáveis e sorrateiramente, quem vai decerto matar
um seu irmão amanhã, irmão esse, que ali está a milhares de quilómetros de
casa, longe dos seus, passando privações, para o defender a ele e aos seus interesses...
Não tenho, quando o sol entra no ocaso, ter de me enfiar em
buracos debaixo de terra para me proteger de bombas...Não tenho que andar meio
grogue com cerveja e ir alta madrugada para a cama, para não pensar nos medos
em que vivo, como aqui...
Não tenho que receber ordens, sem ser de quem para isso me
pagar, como aqui...Aturar tanta gente desinteressante e básica, como
aqui...Andar de farda, como aqui...
Ter que fazer continências, que dizem ser um cumprimento,
mas eu só cumprimento quem quero e de quem gosto, não como aqui...Não tenho que
ver homens de vinte anos a comer mal, morrer, ficar em pedaços e meio loucos
todos os dias, como aqui...Andar, correr e saltar sem estar rodeado de arame
farpado...Dormir sem uma arma à cabeceira e granadas debaixo da cama...PORRA na
minha Lisboa não é nada como aqui...
Que estou eu aqui a fazer com uma arma na mão ??!!
Na minha terra ninguém me obriga a lá estar...vivo nela e
amo-a porque quero...porque gosto de tudo que ela contém e representa...mesmo
do mau, por vezes gosto !!
Até um dia....se voltar a haver um dia....
JJ Op. Cripto Tite
– Guiné 1967-69
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