“A pergunta confronta e exige resposta: “A bandeira é a roupa de um país?” A interrogação é do escritor moçambicano Mia Couto e faz parte do texto que acompanha uma imagem de autor não identificado, que retrata uma bandeira portuguesa dobrada entre mais material capturado pelo PAIGC (Partido Africano para a Independência da Guiné e de Cabo Verde) ao exército Português.
A pergunta questiona o visitante da exposição “Visões do
Império”, patente até 30 de dezembro no Padrão dos Descobrimentos, em Lisboa. As
pistas para a resposta estão todas lá: no título no plural, na primeira
fotografia da exposição — um negro por trás de uma máquina fotográfica, do
fotógrafo moçambicano Sebastião Langa —, no livreto que ajuda a perceber o
percurso, com imagens contrastantes de vários pontos de vista, e nos textos de
vários autores com diferentes perspetivas do império português.
“A fotografia foi um elemento fundamental da história do
moderno colonialismo português.
Sem ela, a idealização e o conhecimento sobre os territórios
coloniais, seus recursos e populações, teriam sido diferentes. As imagens
fotográficas foram encenadas e comercializadas,
com diferentes propósitos”, pode ler-se no texto de abertura.
Um aviso a partir do qual fica claro ao visitante que o que
vai ver não pode ser o resultado de um passeio despreocupado, mas vai exigir
esforço de observação e interpretação para que seja possível apreender o que lá
está plasmado e o muito que fica de fora.
São imagens de “sonhos e memórias individuais e coletivos”
que “alimentaram a dominação colonial”, escrevem os curadores, Miguel Jerónimo,
historiador, e a realizadora Joana Pontes. Sublinhando o papel instrumental da
fotografia, explicam que foi através da construção do imaginário do Outro, no
espaço colonial, que se sustentaram “leis e práticas de discriminação política,
social, económica e cultural, desenhadas ao longo de linhas raciais”. Ou seja,
a exposição que não pretende ser um manifesto, o é claramente. E, num momento
em que vários países se confrontam com o passado de colonizador ou de
colonizado, a exposição inaugurada a 15 de julho mantém uma tal riqueza de
imagens que se torna quase obrigatório passar pelo Padrão dos Descobrimentos.
Mas de tal forma está construída, respeitando a lógica do
contraditório, que sempre outras
fotografias estão expostas de forma a servir para “denunciar
a iniquidade e a violência da colonização, acalentando aspirações de um futuro mais
humano e igualitário”. “Visões do Império” é uma exposição que funciona como um
espelho e o seu avesso e, mais do que apenas as imagens fixadas, o que
realmente interessa são “os contextos de produção e de uso da fotografia”, resultando
quase num manual de interpretação.
“O que é preciso é que seja um debate informado”, alertam os
curadores.
Ao Expresso, Miguel Jerónimo explica que foram tantas as
imagens vistas para proceder à seleção que deu origem a “Visões do Império” que
é impossível contabilizá-las, mais um sinal de que vendo, fica sempre muito por
ver. Feita a escolha, Joana Pontes faz questão de sublinhar que “o objetivo da
mostra não era criticar o modelo colonialista adotado por Portugal”, até porque
ambos discordam da forma “polarizada e moral” como o debate tem sido travado. O
que é urgente é informar, dizem. “Esta exposição tenta mostrar que é possível
pensar para lá da acusação ou da colaboração. Não houve o filtro da crítica,
mas a intenção de mostrar a diversidade de pontos de vista das fotografias e os
usos que esta teve”, desenvolve a realizadora.
DO FILME À FOTOGRAFIA Tudo começou com um documentário de
Joana Pontes sobre a guerra colonial estreado no ano passado no Festival DocLisboa.
Tantas foram as imagens que lhe passaram pelas mãos que se tornou incontornável
desenvolver o projeto. “Há milhões
de fotografias do império espalhadas pelos locais mais
imprevisíveis, um mundo verdadeiramente gigantesco e que os portugueses ainda não
conhecem”, alerta. Desta constatação foi um passo até ao convite feito a Miguel
Jerónimo.
No fim, a certeza de que cada fotografia exposta permitiria
desenvolver uma história, mesmo
que muitas não tenham a autoria devidamente identificada.
Tudo foi minuciosamente pensado. “Quisemos reconhecer a
nossa incapacidade de mostrar como o outro documentou a colonização, por isso
escolhemos como primeira a imagem de um fotógrafo negro. O olhar do colonizador
sempre prevaleceu e tentámos equilibrar esta situação”, afirma Miguel Jerónimo.
Para Joana Pontes, outra surpresa que a exposição lhe trouxe são as imagens de
famílias de colonos portugueses pobres em África. “É a história
que nunca se contou dos portugueses pobres, dos brancos
pobres, que ficaram sempre pobres. É uma imagem que nos obriga a pensar na
enorme responsabilidade de se enviarem aquelas pessoas para o trabalho agrícola
num local que desconheciam completamente”, conclui.
Abrigadas no monumento criado para enaltecer os Descobrimentos
portugueses, as fotografias, cedidas por várias coleções públicas e privadas,
nacionais e estrangeiras, permanecerá patente até 30 de dezembro. Muitas foram
fruto da pesquisa em instituições
como o Arquivo Histórico Ultramarino, Arquivo Nacional da
Torre do Tombo, Biblioteca
Nacional, Arquivo da Universidade de Coimbra, da Liga dos
Combatentes, do Santuário de Fátima, ou do Centro de Documentação e Formação Fotográfica,
de Maputo, assim como da Fundação Mário Soares/Maria Barroso, Arquivo &
Museu da Resistência Timorense, Arquivo Histórico de São Tomé e Príncipe. Mas
há surpresas inéditas, como fotografias enviadas por soldados da Guerra
Colonial ou ainda de missionários protestantes.
Ao longo das salas, os contextos sucedem-se, refletindo os
múltiplos cenários e usos da fotografia: ciência, documentação antropológica, a
“civilização” que chega ao outro mundo e que diz ter a missão de o pacificar, o
trabalho forçado, a educação e a evangelização, sob o título “oficinas da
alma”, a povoação e o reordenamento destas fronteiras esticadas, a promoção do
desenvolvimento à imagem da metrópole, a religião e a arte exportadas. E “as
guerras”, em que mais uma vez a utilização do plural não é uma opção inocente dos
curadores.
No fim, surge uma instalação com imagens que emergiram do
chão (negativos encontrados entre os paralelepípedos da Feira da Ladra) dos
rostos de uma “não-Nação”, construída pelo artista ARQUIVO HISTÓRICO
ULTRAMARINO
A exposição tenta mostrar que é possível pensar para lá da
acusação ou da colaboração. Sem o filtro da crítica, mas com a intenção de
mostrar a diversidade de pontos de vista “Apoteose”. Viagem do Ministro das
Colónias à Guiné (1935), foto de Elmano Cunha e Costa
visual Romaric Tisserand, a que se juntaram textos da
ativista Myriam Taylor.
A partir de setembro estará disponível um catálogo da
exposição, com textos desenvolvidos, e,
até lá, o documentário que lhe deu origem será exibido no
Cinema Ideal, em Lisboa, a 15 de julho, três dias mais tarde no Trindade, no
Porto, e a 19 de julho volta a Lisboa, para o City Alvalade. Mas,antes de sair
do Padrão, mais uma frase de Mia Couto fica a soar: “O que por um instante é
fingimento, no minuto seguinte se converte na mais cruel realidade.”
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