Reproduzimos a seguir, um artigo inserto neste blog, com vários comentários, sobre o tema da
Entrega de instalações e que foi aqui publicado em 5 de fevereiro de 2010, da autoria do alferes Fernando Teixeira da 2ª Cart. do B.Art. 6520.
Os ultimos dias em
Nova Sintra
Meu Caro Raul Sinos
Devido a uma série de circunstâncias só agora me foi
possível produzir uma pequena crónica sobre o dia 17 de Julho de 1974. - o dia
em que deixámos definitivamente Nova Sintra. Tanto esforço da vossa parte para
acabar da maneira como acabou. Gostava de ter os teus comentários aos factos
que descrevo. Afinal eles são parte da história da desgraçada guerra em que nos
meteram. Um abraço amigo do
Fernando Teixeira 2ª
C. Art. do B. Art 6520/72
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Para perceber os últimos dias de Nova Sintra como posição do
exército português é preciso recuar alguns meses para perceber o contexto em
que se deu a entrega do aquartelamento ao PAIGC. Nestas notas, todas as ideias
que exporei representam, antes de mais, a maneira como eu vi e vivi os
acontecimentos. Provavelmente outros companheiros terão outros pontos de vista.
O que vos exporei é aquilo que eu penso volvidos trinta e seis anos após os
acontecimentos. Um ponto que me parece crucial para a análise dos factos é o
estado psicológico em que se encontrava a 2ª C.Art do B.Art 6520/72, a última
companhia de Nova Sintra. Tudo será mais fácil de compreender quando se
perceber que a Companhia que tinha sido mobilizada para uma comissão de 18
meses no CTIG, esteve no teatro de operações durante 26 meses. O resultado da
incapacidade de recrutamento suficiente que se vivia já na altura. Eu próprio,
um simples aspirante graduado em alferes, a meio da minha comissão em Nova
Sintra fui “convidado” para ser graduado em capitão para poder ir comandar uma
companhia algures no teatro operacional. A Metrópole já não tinha capacidade
para fornecer os capitães necessários ao comando das companhias. Felizmente não
me foi difícil evitar tão “benevolente” promoção a oficial de três riscos. Os
vinte seis meses passados neste teatro operacional pela 2ª C.Art do B.Art
6520/72 fizeram mossa em quase todo o pessoal. Felizmente a Companhia era
comandada por um capitão-miliciano, em regime de rendição individual,
personalidade madura e fortemente compreensível para com o pessoal que tinha à
sua responsabilidade. Não fosse a sua postura e os últimos meses em Nova Sintra
poder-se-íam ter tornado muito mais complicados para a 2ª C.Art. O pessoal
encontrava-se física e animicamente extremamente depauperado. As operações
sucediam-se e muitos dos homens já tinham tal repugnância às rações de combate
Mod. E20 que praticamente não lhes tocava. Os fatos de combate há muito tinham ultrapassado
o prazo de duração. De tal maneira que quando fomos visitados pelo general
governador e mandámos abrir fileiras para a tradicional revista às tropas em
parada, o senhor não se coibiu de tecer fortes críticas pois aquilo com que se
deparou era um bando de maltrapilhos. Refira-se que, dois dias depois, chegaram
fatos de combate novos para toda a companhia. Afinal General é General. Nunca
pretendi perceber nada de guerra pois esse nunca foi o meu objectivo de vida.
Limitei-me a saber o mínimo indispensável para trazer sãos e salvos os homens
que me estavam confiados, coisa que nem sempre consegui. Contudo, durante a
citada visita de pompa e circunstância do senhor general, apercebi-me que havia
quem percebesse muito menos de condução de tropas do que eu. O referido senhor,
do alto da sua pesporrência, sai-se com este conselho-ordem do mais ridículo
que eu já vi: “ – A tropa deve fazer todos os dias pelo menos meia hora de
ordem unida para manter a disciplina!”. Sim, mandar fazer ordem unida a homens
que dia sim, dia não, faziam uma operação de 24 horas. Pura e simplesmente
inacreditável. Afinal não estava a tropa disciplinada? Disciplinadíssima, digo
eu! Como é que uma tropa que já tinha ultrapassado largamente o seu período de
mobilização ainda ia atrás de mim para o mato, para mais uma operação de
combate, quando eu lhe dava a voz de comando “ – Está a andar” se não estivesse
disciplinada? Outro aspecto da nossa tropa que me impressionou desde o dia em
que aterrei em Nova Sintra foi o nível de escolaridade dos nossos homens. Dos
162 efectivos da Companhia, dos quais vinte eram quadros, cinquenta eram
analfabetos. Sim, um terço da Companhia, não sabia ler, nem escrever, nem
contar. Estávamos em 1973 e o pessoal tinha entre 21 e 22 anos de idade. Que me
perdoem os mandantes da guerra ávidos de sangue e vitórias quixotescas mas, a
partir dessa constatação, um dos meus principais objectivos nestas “férias”
tropicais passou a ser o ensino dos mais elementares rudimentos escolares que o
pessoal não tinha adquirido enquanto criança. Neste particular, a guerra
saldou-se por uma vitória para eles. Os cinquenta fizeram o seu exame da quarta
classe depois de muita luta. Como refiro acima, a permanência naquele teatro
operacional causou forte mossa na maior parte do pessoal. Outra coisa não seria
de esperar. Para que melhor se perceba este estado não resisto a citar alguns
dos casos que mais me impressionaram por demonstrarem bem aonde o estado
anímico tinha chegado. Meros exemplos tirados ao acaso. Um dos nossos companheiros
porque queria telefonar à família, um dia resolve fardar-se, fazer a mala e
sub-repticiamente sai sozinho do aquartelamento, pelo mato fora, rumo a S.João.
Antes de chegar a este destacamento pisou uma mina ficando mutilado. Valeu-lhe
um caçador que, pegando nele às costas, conseguiu fazê-lo chegar a S. João
donde foi evacuado. Outro, depois duma quezília sem importância, resolve
vingar-se defecando para dentro do poço que abastecia de água a Companhia.
Depois de umas centenas de comprimidos de Halazone, esses comprimidos
desinfectantes que tão bem conhecemos, deitados para o poço e largos dias a
beber água da bolanha, lá se voltou a utilizar a água desta nossa fonte
habitual. Um dos nossos cozinheiros, porque lhe passou uma coisa má pela
cabeça, resolve confeccionar o café da manhã (já de si de péssima qualidade)
com uma das suas botas dentro do caldeiro. Outra vez, no meio de uma operação
de emboscada nocturna reparo que um grupo de combatentes não tinha mais nada
para nos comprometer a todos do que fazer uma fogueira no meio da mata.
Queixavam-se de frio no calor tórrido da Guiné. Por fim, já em Bissau, uns dias
antes da Companhia regressar a Portugal, um dos homens do meu próprio grupo de
combate, num acto absolutamente tresloucado resolve atirar com duas granadas
para dentro de um recinto onde decorria um baile, matando, assim, várias
pessoas. Era um homem absolutamente problemático que há muito tempo deveria ter
sido evacuado. Meros relatos ao acaso que, em meu entendimento, dão uma pálida
ideia do estado psicológico de muitos dos efectivos. Foi no meio deste
ambiente, em que todos, de uma maneira ou de outra, se entreajudavam que um
dia, estando eu na Enfermaria da unidade, a observar uma partida de xadrez
entre dois camaradas, oiço qualquer coisa que me pôs todo arrepiado. Havia um
rádio sintonizado na Rádio Conakry de onde falava a célebre “Maria Turra”. De
repente percebo que a dita “Maria” dá a notícia que tinha ocorrido uma
revolução em Portugal e que os principais objectivos dos vencedores era a
deposição do governo do Estado Novo e o fim da guerra colonial. Eram oito da
noite. Corria o dia 25 de Abril de 1974. Corro ao encontro do comandante da
Companhia abraçando-o esfuziantemente. Para nós era o fim daquele inferno em
que tantos dos nossos camaradas ficaram estropiados ou morreram. A seguir vem a
angústia da espera pelo noticiário da BBC, essa fonte de verdade que nos ligava
ao mundo civilizado. Rodeámos no mais sepulcral silêncio esse enorme receptor
Philips preto, multibanda, propriedade do Comandante da Companhia. E, à hora do
costume, lá vem a notícia com todos os pormenores do que se havia passado nesse
dia em Portugal. As lágrimas correram-me pela cara abaixo tanta era a alegria.
Depois o pânico pelo receio de poder ocorrer um contragolpe e tudo poder voltar
ao mesmo ou ainda pior. Só quando percebemos a monstruosa demonstração cívica
que tinham sido as comemorações do primeiro 1º de Maio, descansámos. Percebemos
finalmente que o processo era irreversível. Agora era a angústia por conseguir
adivinhar como iria decorrer todo o processo do fim da guerra no terreno. Todas
as noites, qual ritual, rodeávamos o rádio preto para ouvir a BBC relatando a
evolução dos acontecimentos no nosso País. Foi com especial atenção que ouvimos
a notícia de que o avião do Presidente Léopold Senghor, logo a seguir à tomada
de posse do primeiro Governo, tinha transportado Mário Soares, o então novel
ministro dos Negócios Estrangeiros, para dar início às conversações de
cessar-fogo com o PAIGC. O brilho da luz da Paz ia aumentando. As conversações
andavam para trás e para diante. O pessoal tinha perdido aquela tensão que
caracteriza o estado de guerra. Uma situação que poderia permitir uma abertura
perigosa da defesa. Lembro-me das conversas que tive nessa altura com o nosso
Capitão, conversas, estas em que trocávamos os nossos receios de que, para
forçar um acordo de Paz, o PAIGC fizesse um último esforço ofensivo para forçar
os acontecimentos. Nunca me senti tão preocupado no mato. Comandava, agora, um
grupo de homens que já não eram soldados em combate mas, antes, um grupo de
pessoas que, definitivamente, já só tinha o pensamento na Metrópole. O estado
psicológico da tropa tinha feito uma rotação de 180 graus. As negociações,
essas, evoluíam. A certa altura, eu que nunca tinha usado galões no meu fato de
combate para não ser reconhecido, recebo instruções para que, sempre que fosse
para o mato, passasse a usar os meus galões dourados de alferes. Uma maneira de
ser facilmente reconhecido e poder dialogar com as tropas do PAIGC se, por
acaso, nos encontrássemos. Afinal as desconfianças ainda eram mútuas o que fez
com que nunca houvesse nenhum encontro. A certa altura vamos tomando
conhecimento que se iam finalmente abandonando as posições do Exército
Português, das fronteiras para o interior, rumo a Bissau. As notícias vão
chegando mas nada em relação a Nova Sintra. Afinal quem olhasse para uma carta
militar perceberia que nós constituíamos a defesa Sul imediata da capital e,
fatidicamente, seriamos dos últimos. E assim veio a acontecer. Não fomos a
última companhia do Batalhão. Por acaso, fomos a primeira. Depois Fulacunda. A
seguir Gã Pará e, finalmente, Jabadá. Tite havia de permanecer mais três meses
como sede do COP 6. Um dia chegaram as instruções do modo como deveriam
decorrer as formalidades com o PAIGC para lhe fazermos a entrega daquele
aquartelamento denominado Nova Sintra. No dia aprazado deveria um oficial
dirigir-se à Primeira Bolanha para se encontrar com os Comissários Políticos
que se faziam acompanhar pela respectiva tropa. Depois deste encontro
protocolar deveriam dirigir-se ao aquartelamento entrando no arame junto ao 4º
Grupo de Combate. Foi escolhido o alferes mais antigo que tinha a
particularidade de falar crioulo o que poderia facilitar as coisas. Finalmente,
íamos ficar frente a frente com o inimigo. Decorria o dia 16 de Julho de 1974.
Percebemos que o PAIGC ainda desconfiava do Exército Português. Rodearam-se de
todos os cuidados e mais algum neste encontro. Dentro do aquartelamento a
ansiedade ia aumentando à medida que o tempo ia passando e ninguém aparecia na
vereda que ligava a Primeira Bolanha ao arame. Finalmente, surgiram lá ao fundo
o nosso oficial encarregue de receber as tropas do PAIGC acompanhado pelos
Comissários e, finalmente, a tropa. Garanto que foi uma visão muito estranha.
Afinal eram aqueles os nossos inimigos com quem nos guerreávamos até à uns
meses atrás. À entrada do arame fazem-se as apresentações e as continências da
praxe em tais ocasiões. Finalmente estava frente a frente com o IN. Nesse
momento percebi que não havia ódio nos seus olhos. Percebi que afinal só
tínhamos estado em lados opostos de uma mesma guerra. Depois, dentro do arame
veio o convívio entre todos. Aqueles homens que todos pensávamos serem uns
seres estranhíssimos eram homens iguais a nós. Nova Sintra na actualidade Nessa
tarde ainda discuti com o oficial artilheiro do PAIGC o último ataque que ele
nos tinha feito. Com uma precisão de se lhe tirar o chapéu, diga-se em abono da
verdade. Afinal apanhámos 50 rabos de granadas de canhão sem recuo dentro de um
quadrado de 30 x 30 metros. Para nossa sorte, a uns 70 metros do meu grupo de
combate. Comparando as nossas cartas militares verificámos que elas tinham
diferente precisão. Em matéria de topografia saímos a ganhar com bastante pena
dele. Lastimou-se dizendo-me que se tivesse as nossas cartas enfiaria as
granadas todas dentro do arame. Uma mera conversa técnica. Uma conversa entre
oficiais do mesmo ofício sem qualquer ódio ou rancor. Depois do jantar acabámos
a noite a jogar à sueca com o “inimigo”. Que partidas nos prega a vida. A meio
do jogo, eu que detesto jogar às cartas, dei comigo a filosofar. Vista agora à
distância, aquela guerra assemelhava-se muito à guerra do Solnado, não fossem
os nossos companheiros mortos ou estropiados. De lado a lado, não nos
esqueçamos. Sempre pensei no ódio figadal que deveria existir entre os
combatentes de ambos os lados. Posto perante o “inimigo” percebi que não havia
nenhum ódio ou rancor. Tudo tinha-se desvanecido. Acabei por ficar envergonhado
pelos pensamentos que, durante muito tempo, me ocorreram sobre o modo como
lidaria com o inimigo se algum dia fosse posto perante algum. Ainda hoje me
envergonho, apesar de os compreender esses maus pensamentos. A confraternização
das NT com o IN Depois da sueca dormi a última noite em Nova Sintra no meu
buraco semi-subterrâneo. No dia seguinte, depois da cerimónia solene do arrear
da bandeira perante a 2ª Cart. do B.Art. 6520 e a tropa do PAIGC formadas lado
a lado, arrancámos para Tite. Assim terminava a saga de Nova Sintra. Corria o
dia 17 de Julho de 1974.
Fernando Teixeira, alferes da 2ª Cart. do B.Art. 6520
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Meu bom Amigo e Camarada Fernando Teixeira
Obrigado pelo teu artigo sobre Nova Sintra e não só. Nesta
hora já o li por duas vezes e não deixei de me emocionar. Vou mandar o teu
texto para o Guedes a fim de ser publicado no nosso Blog São depoimentos iguais
aos teus que fazem história Obrigado Amigo
Pica Sinos
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do Hipólito: .
Ficamos emocionados, certamente. São, efectivamente, relatos
destes, pelo seu realismo e simplicidade, que calam bem fundo a quem conheceu e
viveu toda a problemática da guerra no sector de Tite. Como diz, e muito bem, o
Fernando Teixeira para quê tanto esforço, sangue, suor e lágrimas de todos nós
para acabar assim a desgraçada guerra em que nos meteram. Faltará que alguém
nos conte, igualmente, a transmissão de poderes em Tite, propriamente dito,
para se escrever mais uma página da nossa história. Um abraço e um bem haja,
pela sua disponibilidade, ao Fernando Teixeira. Hipólito .
4 comentários:
Muito bem.
Um abraço
Um relato impressionante...!!!
AG
Obrigado amigos pelo vosso interesse por tudo aquilo que se vai passando nesta página dos ex-combatentes de Tite.
Muito obrigado.
Um abraço.
LG.
Porquê um soldado americano a ilustrar este post?
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