Relembrámos aqui, a descrição do alferes FERNANDO TEIXEIRA, da 2ª. CART do BART 6520/72. Este artigo foi anteriormente publicado neste blog em 26 de Fevereiro de 2010, o qual pode ser lido integralmente, bem como os respectivos comentários.
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Meu Caro Raul Pica Sinos,
Como o prometido é devido, aqui vai um
pequeno texto sobre como eu vivi os últimos dias em Tite. Afinal fui um dos
últimos portugueses a deixar este aquartelamento que curiosamente, em 1963, no
dia 23 de Janeiro, tinha sofrido o primeiro ataque realizado pelo PAIGC naquela
que seria a malfadada guerra em que nos meteram. Falas em encontrarmo-nos
pessoalmente. Eu vivo em Lisboa, mais propriamente na Portela de Sacavém. E tu
onde vives? Um abração
Fernando Teixeira
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TITE A ÚLTIMA POSIÇÃO PORTUGUESA NO QUÍNARA.
Como referi em crónica anterior,
a 2ª C. Art do B. Art.6520/72 deixou Nova Sintra, rumo a Tite, no dia 17 de
Julho de 1974, pernoitando a Companhia, em Tite, para, no dia seguinte,
embarcar para Bissau, rumo ao “Puto”. E assim, foi. De manhã, para aproveitar a
maré, chegou a LDG que iria levar os homens e material da Companhia.
Acompanhei-os até ao Enxudé e despedi-me, um a um dos meus homens. Os homens do
Segundo Grupo de Combate da unidade. Ao despedir-me fui confrontado com a minha
frustração de comandante que tinha traçado como seu primeiro objectivo
recambiar para Portugal todo o seu pessoal são e salvo. Infelizmente, falhei
este meu objectivo e este falhanço tem-me perseguido a vida inteira. E naqueles
momentos em que a síndroma pós-traumática ataca com mais força tento sempre
convencer-me, infelizmente em vão, que quem vai à guerra dá e leva. E, assim,
ainda hoje, choro os homens que estavam à minha responsabilidade e que eu não
fui capaz de devolver aos seus entes queridos, vivos ou inteiros. Os dramas de
um comandante. Apesar de saber que a guerra, final e definitivamente, tinha
acabado para eles, foi com uma enorme emoção que os vi desaparecer rumo a
Bissau. Nesse momento, tirei o meu lenço de seda azul – distintivo do grupo –
que todos usávamos com o nosso fato de combate. Afinal já não comandava mais o
2º Grupo de Combate da 2ª C. Art. do B.Art. 6520/72. Restava-me mais uns meses
de espera em Tite, antes de chegar a minha vez. Afinal, eu ainda estava a meio
do período da minha comissão e, como tal, fui requisitado para ficar como
adjunto do Comandante do COP 6 que, entretanto, tinha sido criado em Tite para
assegurar a defesa Sul da capital. Passei, assim, a exercer as funções de
amanuense de luxo, com direito a gabinete com paredes meias com o gabinete do
“Maior”. E os dias foram passando cada vez mais lentamente na medida em que as
saudades da família iam crescendo. Afinal tinha estado casado somente três
meses antes de partir para a Guiné, vítima de uma inqualificável mobilização em
que fui preterido em detrimento de outros oficiais mais modernos. Porque era
amanuense de luxo tive oportunidade de viajar com o “Maior” pelas outras
companhias ainda presentes no terreno, Jabadá, Gã-Pará (ou Ganjuará). Com muita
pena minha não visitei Fulacunda. Para visitar Gã-Pará fomos de avião até Porto
Gol, atravessando o rio Geba, de Sintex, até ao extremo do Quínara. Que
impressão me fez ver as instalações onde esta Companhia viveu mais de dois
anos. Simplesmente, abaixo de cão. Ao que me disseram fruto da teimosia de um
cabo de guerra que pontuou na Guiné por alguns anos... Nesta altura já
contactávamos assiduamente com os elementos do PAIGC que circulavam livremente
por todo o Quínara. Uma coisa que me marcou nestas relações com o ex-IN foi o
elevado nível de cortesia e aprumo militar que sempre pautaram todos os nossos
contactos. Simplesmente exemplar. Porém, se as coisas corriam bem com a tropa
portuguesa, as relações com os elementos da tropa africana que fez a guerra ao
lado do Exército Português denotavam uma certa frieza, quando não
agressividade. Uma situação que muito nos preocupava pois temíamos retaliações
do PAIGC sobre os GEMIL. Lembro-me de ter ouvido, por mais de uma vez, o nosso
“Maior” avisar os responsáveis do PAIGC para o perigo dessa atitude pois
poderia significar iniciar um País – a Guiné Bissau – com uma guerra civil.
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CARTA MILITAR DE TITE |
Diariamente lá me ia desembaraçando das minhas tarefas e
aprontando a nossa saída eminente do Quínara. Um dia recebi ordens para começar
a incinerar os nossos arquivos, livrando-nos de toda a papelada inútil. E ao
passar os documentos um a um, a certa altura, cai-me nas mãos um documento que
continha a explicação da minha mobilização abusiva e irregular para o CTIG. Era
a confirmação daquilo que eu já suspeitava há muito. Não resisti a mostrar esse
documento ao Comandante e a dizer-lhe que, na roda da vida, uma vez se estava
em baixo, outra vez se estava em cima e, naquele momento, eu estava em cima.
Poderia ter guardado o documento para me servir dele como arma de arremesso
quando chegasse a Portugal. Mas, não. Resolvi pegar num fósforo e queimá-lo ali
mesmo. Passados trinta e quatro anos ainda não me arrependi desse gesto.
Afinal, nessa altura, Portugal já era um País livre... Em dado momento
recebemos instruções para pagar o pré à tropa africana abonando, esta, até ao
fim do ano. A nossa presença em Tite caminhava a passos largos para o fim.
Restava-me ainda viver mais dois episódios complicados como resquício dessa
guerra em que estivemos envolvidos. Porque a Companhia de Jabadá estava para
evacuar a posição daí a alguns dias, fui com o “Maior” fazer a despedida àquele
aquartelamento situado na curva do Geba. Fomos em dois barcos Sintex para aproveitarmos,
no regresso, trazer alguns víveres que já começavam a escassear em Tite. O
Comandante resolveu partir à frente tendo eu permanecido mais algum tempo em
Jabadá para proceder ao carregamento dos víveres. Estávamos ao fim da tarde.
Estando a Guiné numa zona com 11º de latitude Norte, a geometria terrestre
provoca uns ocasos extremamente rápidos, caindo a noite num ápice. Assim,
passado pouco tempo depois de deixarmos Jabadá rumo ao Enxudé, já estávamos a
descer o Geba de noite. Corria tudo bem até que o motor fora de borda do Sintex
calou-se. O barqueiro que de barcos nada percebia, tentava desesperadamente
repor o motor em funcionamento. Como eu tinha alguma experiência na matéria fui
verificar a quantidade de combustível disponível no depósito. E aí residia o
problema. Este estava completamente seco. Pior foi quando eu conclui que não
havia mais combustível a bordo do Sintex. Estávamos à deriva, descendo
rapidamente com a corrente rumo ao Atlântico. As luzes de Bissau, na outra
margem, iam aumentando e nós na escuridão da margem esquerda. Mandei desmontar
umas grades de batatas que transportávamos para, com as tábuas de que estas
eram feitas, improvisar uns remos de emergência. Porém, rapidamente percebi que
com as tábuas dos caixotes nunca conseguiríamos vencer a forte corrente. Ainda
pensei tentar dirigir-me para a margem mas um elemento do PAIGC que vinha
connosco avisa-me: “ – Alfero, neste sítio manga de crocodilos!”. Assim pensei
ser mais assisado prosseguir ao sabor da corrente. No meio da escuridão da
noite, a um dado momento ouve-se um motor fora de borda. Percebi que deveriam
andar à nossa procura. Bem gritámos a pedir socorro mas o barulho do motor
abafava os nossos chamamentos. Lembrei-me a certa altura de que era portador de
uma pasta contendo uns quaisquer documentos confidenciais e vi, nesses
documentos, uma provável maneira de sairmos desta situação que começava a ser
bastante complicada. E como eles eram “confidenciais” logo pensei que a melhor
maneira de preservar essa “confidencialidade” seria utiliza-los com archote
para localizar a nossa posição à embarcação que andava à nossa procura. Meio
dito, meio feito. Chega-se-lhes um fósforo, lá se “foram” os documentos mas
fomos localizados. Cabo de reboque passado, recolhemos à segurança do Enxudé.
Os dias iam passando e a um dado momento recebemos instruções para desarmar a
tropa africana. Aí percebemos que íamos ter complicações graves e percebe-se
porquê. Eu, se pertencesse àquela tropa, não ficaria nada descansado tanto mais
que já tinha havido um incidente grave entre um ex-combatente dos GEMIL e
elementos do PAIGC. Exposta a situação a quem de direito em Bissau, fomos
visitados por uma delegação de oficiais portugueses e oficiais dos Comando
Africanos que vieram a Tite para tentar deitar água na fervura entre a tropa
africana e os elementos do PAIGC. Desta visita ficou-me gravado na memória o
facto do oficial português mais graduado da comitiva – um capitão-tenente da
Marinha – ter acompanhado o almoço com uma garrafa de whisky só para ele, como
se de vinho se tratasse. No fim nem uma gota ele deixou no fundo da garrafa.
Nunca pensei que se pudesse emborcar tanto álcool de uma só vez! Acalmaram-se
os ânimos. Pelo menos por algum tempo. Aproveitou-se para retirar o armamento à
tropa africana e acondicioná-lo na respectiva arrecadação. Os nervos desta
tropa ficaram à flor da pele. Para complicar tudo voltam a dar-se incidentes
com elementos do PAIGC. OS ex-combatentes que tinham combatido ao lado do
Exército Português entram em alvoroço e ameaçam arrombar a arrecadação de
material de guerra para reaver as suas armas. Foi o diabo para os conter.
Tivemos que os ameaçar que abriríamos fogo se tal fosse tentado. Para nós
estava criada uma situação dificílima pois se pretendíamos evitar incidentes, entre
ambas as facções guineenses, de um lado tínhamos um bando de desesperados.
Prevendo que, aproveitando a noite, poderia haver uma tentativa de assalto às
armas, tomámos uma medida engenhosa para evitar o pior no caso da tropa
africana levar a cabo o citado assalto. Assim, o mais disfarçadamente possível,
cada oficial foi à arrecadação, retirou umas dezenas de culatras das G3,
metendo-as, seguidamente, nos seus sacos e malas de bagagem pessoal e
dissimulando-os nos seus quartos. Assim, as armas de fogo tinham passado a
meros varapaus. Foi uma noite de angústia para todos nós já que poderíamos ter
de abrir fogo sobre os nossos antigos apoiantes. Mais umas acções diplomáticas
junto de ambas as partes e lá se conseguiu apaziguar os ânimos. Contudo, foram
dias muito difíceis para nós que ficámos a temer que, a qualquer momento, o
“caldo se entornasse”. Finalmente recebemos ordens para evacuar Tite. Na última
semana que lá passei, porque já não houvesse mais mantimentos, comemos a todas
as refeições feijão guisado que cozia permanentemente nos caldeiros tal era o
seu estado de dureza. E, assim, nos primeiros dias de Outubro, em data que já
não consigo precisar – talvez no dia 2 ou no dia 3 – chegou o nosso último dia
em Tite. De manhã bem cedo, formou a tropa portuguesa com a tropa do PAIGC ao
lado e uma grande parte da população a envolver-nos. Içou-se a bandeira de
Portugal pela última vez no mastro do quartel ao som dos toques de ordem.
Seguidamente, o corneteiro perante o silêncio sepulcral de todos dá o toque
para arriar a bandeira. Esta desce devagar, é dobrada e entregue ao Comandante.
Vi neste momento, numa emoção verdadeiramente sentida com muitos elementos da
população civil com as lágrimas a correr pela cara abaixo. O corneteiro toca
novamente a içar a bandeira e sobe no mastro de Tite a bandeira da Guiné
Bissau. Tinha acabado definitivamente a guerra no Quínara, no exacto local onde
se deu a primeira acção militar das tropas de libertação. Corria, então, o dia
23 de Janeiro de 1963 quando o PAIGC faz um ataque ao quartel de Tite. Deste
ataque resultou 1 morto e 1 ferido das NT e 8 mortos confirmados e vários
feridos graves no IN. Agora, os portugueses partiam. Saíram todas as viaturas
com o pessoal rumo ao Enxudé onde aguardava a LDG. Depois de todos partirem, o
Comandante e eu subimos, então, para uma viatura e abandonámos Tite. Fomos os
últimos portugueses a deixar a povoação. Os últimos não. Ficou um português,
civil, muito idoso, que trabalhava para os Serviços de Agricultura havia
dezenas de anos e que não quis abandonar Tite. Embarcámos na LDG e, quando ela
meteu marcha à popa desatracando da rampa, vi o Quínara, onde tinha vivido
momentos tão amargos, ficar cada vez mais pequenino. Virava-se mais uma página
da história da minha vida igual a tantas outras vividas pelos meus camaradas de
armas naquele País distante.
Fernando Teixeira, alferes da 2ª. CART do BART 6520/72.
2 comentários:
De José Luis Patricio:
Importante depoimento. Não comento nada, porque os do blogue ou quem tem coisas para contar que nos interessem a todos que conte.
Um abraço
JL
Obrigado José Luis. Eu bem espero que eles comentem, mas nada acontece,
Entretanto continuo à espera daquele seu artigo sobre Bolama e o alf. Trovisco.
Muito obrigado mais uma vez pelos seus comentários e pelas suas visitas a este nosso blog.
Um abraço.
Leandro Guedes.
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