Cavaleiro
Será que teremos tempo de acabar o castelo, com tanta pedra que nos vão atirando ??!!
Tenho imensa admiração por alguns escritos de Pessoa, mas principalmente pelo género de ser humano que era; inteligente, culto e torturado que foi toda a vida.
Nos finais dos anos 70, ao terminar a leitura de uma sua biografia, que guardo religiosamente, achei entre várias particularidades próprias das mente elevadas, curioso o facto de ter morado em perto de uma dezena de locais em Lisboa.
E um dia...como me abastecia de tintas na firma Lourileux que fica frente á escadaria que leva ao Teatro S. Carlos, lembrei-me que ele tinha nascido no prédio fronteiriço ao teatro. Desci a escadaria (a mesma onde se dá aquela cena canalha de novela, em que uma irmã empurra a outra por ali abaixo) e subi mesmo até, creio, 3º andar, já não recordo bem, e fiquei uns largos segundos a olhar para a porta, que para mim passou a ser histórica.
Sempre tive uma certa "nóia" por cenas destas...locais com história, através de livros e por ouvir o Prof. Hermano Saraiva nos programas sobre Lisboa, cedo ou tarde, lá ia dar uma espreitadela...
Um Abraço
Justo
“...Lisboa. 26 de Novembro de 1935. Pessoa encerra o expediente no escritório de import-export e segue para casa. Debaixo do braço, sempre a sua pasta de cabedal. Antes de chegar ao seu andar na rua Coelho da Rocha, em Campo de Ourique, passa pelo bar do Trindade, logo na esquina. Rotina. O amigo vende-lhe fiado. Chega-se ao balcão e diz:
- 2, 8 e 6.
Trindade serve-o: fósforos, um maço de cigarros e um cálice de aguardente. No olhar, cumplicidade. Os fósforos custam 20 centavos, os cigarros 80 e um cálice de aguardente 60. Pessoa simplifica: 2, 8, e 6 tostões. Trindade já está acostumado. O poeta acende um cigarro e bebe o cálice, um trago só. Retira da pasta uma garrafa vazia, preta. Entrega-a ao Trindade que, discretamente, a devolve cheia. Com a pretinha bem guardada, Pessoa despede-se. Sai aos tropeções e a recitar:
Bêbada branqueia
Como pela areia
Nas ruas da feira,
Da feira deserta,
Na noite já cheia
De sombra entreaberta.
A lua branqueia
Nas ruas da feira
Deserta e incerta...
F.Pessoa”
O texto sobre Pessoa fica assim, secamente, desenquadrado, e dá ideia forçada, do que é um apontamento da vida deste homem sofrido.
O "beber uns copos" não tem nada de especial, e basta rever relatos da época, para se compreender o que seria a vida de seres de inteligência superior, visão futurista e grande sensibilidade, verem-se rodeados de incompreensão, indiferença e falsas moralidades, muito caracteristicas do tempo em que viveu.
Um copo, tanta vez, lava a alma, e diluí as mágoas. Eu próprio por isso passei naqueles dois longos anos de Guiné, em que tenho a certeza, o néctar dos Deuses tantas vezes amparou e chutou para longe os meus medos e a permanente insegurança.
O narrado pequeno "tropeção" de Pessoa, mostra na essência a sua genialidade, no pormenor da abreviatura do pedido...
Justo
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