Nos tempos de estudante da Veiga Beirão, aí pelos meus 17-18 anos comecei a aperceber-me a sério da Guerra do Ultramar.
Começava-mos a ver os colegas mais avançados nos estudos e na idade começarem gradualmente a ir para a tropa, continuando os estudos, pois o curso era nocturno.
Tinha-mos um grupinho que pós aulas, e por vezes “em vez das aulas” se juntava à volta de uma mesa do Café Nacional na rua 1º de Dezembro, em plena baixa Lisboeta, em aberta tertúlia, a atirar por vezes um pouco pró-intelectualóide, e em que normalmente, nós os mais novos, escutava-mos os “séniors” nas suas opinadas teses sobre tudo e todos.
Sabia-mos que havia curiosidade e ouvidos sempre atentos aos nossos diálogos, e alguns Pidescos * , por tão idiotas, e por já minados por alguma surdez, faziam os maiores malabarismos para não perder patavina das conversas.
Fomos tomando amizade com alguns dos empregados, principalmente com um deles, que também fazia serviço no salão de bilhar na cave do Nacional, e que tantas vezes nos fiava o galão e a torrada, quando as finanças andavam por baixo.
Esse salão era explorado na época pelo vice-campeão europeu de bilhar às três tabelas, Jorge Pinto, que quase diariamente fazia presença sempre acompanhado pela mulher e por vezes a filha, dando de quando em vez, alguns shows de bilhar na sua modalidade.
Escusado será dizer, que o salão concentrava-se em peso em redor do grande bilhar.
Sempre assistência conhecedora e bastante atenta, embora por vezes mais para as pernas da senhora, que para as fenomenais carambolas.
No tal grupo do Nacional, o mais velho, já estava a cumprir serviço militar havia uns meses, e lá nos ia respondendo às questões e contando episódios do seu quotidiano “tropista”.
Eu sempre fui muito teimoso, por vezes até demais, e recordo um episódio, que mais tarde reputei de totalmente idiota da minha parte:
Ele explanava sobre o seu primeiro dia de instrução de tiro com a espingarda Mauser (que era o terror geral, pois dava um coice tremendo ao ser disparada, criando-se um quase mito tenebroso à volta da arma) e referiu ser uma arma de repetição etc. etc..
Ora eu, sempre “xico-esperto” “emendei-o”...que sabia que a espingarda Mauser, a cada tiro, tinha que se puxar a culatra atrás para a inserção de novo cartucho e consequente disparo, portanto não era de repetição!!..
Asneira da grossa, mas claro, tinha “metido” a ideia de que “repetição” era rajada, portanto de arma automática.
Ainda por cima fui tão insistente na minha “afirmação” que quase levei para contar, pois o colega em referência era dos mais calmeirões da Veiga.
Vim a saber mais tarde que acabou por ingressar no curso de Rangers em Lamego.
Entre as várias referências militares, referiu uma especialidade relativamente nova, mas que estava a criar muitas simpatias entre a juventude militar e pré-militar; a de Operador de Cripto.
Muito me informei, e por sorte, no ano seguinte um dos colegas, foi exactamente para essa especialidade, e como se prevê, não o largava, sempre colhendo o máximo de informação, que alguns galões e bolas de Berlim me custaram, à volta das mesas da Leitaria Académica, frente à Veiga Beirão, no Largo do Carmo.
Todo este preambulo vem a propósito de um episódio passado em Tite:
A nossa especialidade devido a muitas restrições, secretísmos e operar com material classificado, tudo imposto pelas suas características, causava certos engulhos, para as quais inclusive, era-mos alertados durante a especialidade.
Se havia tantas cautelas e restrições, elas tinham a sua forte razão de ser, para salvaguarda e protecção das operações militares desenvolvidas em teatros de guerra, bem como, uma forma de acautelar a segurança e vida das NT.
Além de tudo, era assim que mandavam as NEPs e tinham que se cumprir.
No quartel RAAF em Queluz, tive uma cena, exactamente devido aos tais engulhos, com uma Tenente “chico” que mais tarde talvez venha a narrar.
Agora, passados mais de quarenta anos, posso falar sem restrições sobre alguns pormenores técnicos, não profundos, pois sistemas, códigos e maquinaria, já pertencem à história e por totalmente obsoletos, serão próprios de museus.
Todos os Centro Cripto, tinham equipamento específico obrigatório, inclusive, apenso à porta no interior, uma relação do pessoal autorizado a ter acesso ao mesmo, um cofre forte e um forno de incineração.
Normalmente o operador também dormia do próprio CCP, pois na nossa especialidade e sendo o único operador da Unidade, a sua efectividade ao serviço era diária e permanente.
Em Tite, não tinha-mos incinerador.
Como as alterações de códigos eram diárias, semanais e mensais, havia a necessidade de queimar ** material credenciado e secreto.
Optamos, como recurso, por o fazer no caixote de lixo metálico (meio bidon de gasolina cortado ao meio) que se encontrava mesmo à porta do C.Cripto.
Num certo período, sempre que “fazia uma queimada” invariavelmente abeiravam-se do bidon com a papelada a arder, dois militares - não recordo pormenores, mas sei que não eram da CCS - e que, alertados pelo cheiro a papel queimado, logo se prantavam espécados a olhar.
Pedia para se afastarem, e “básicamente” lá tentava explicar que a “coisa era privada”...etc...etc..., mas eles nada !!
Como recurso, acabava por não alimentar mais a fogueira e recolhia ao CCP, para mais tarde continuar o trabalho.
Atalhando!!...um dia, em que mais uma vez aparecem os dois “plantões à queima” e com paciência de Job, mais uma vez tentei explicar que se tratava de material secreto...blá...blá...blá...e não é que um deles, com o ar mais sério deste mundo, se vira para mim e “dispara”:
- Vocês tem a mania dos secretos, mas a gente já sabe tudo !!...
- Então é... Charlie, Alfa, Tango, Alfa, Papá, Foxtrot......é sempre a mesma lenga-lenga...se é segredo, falem baixo...em segredo ??!! ***
Aqui fica mais uma estória, com “e”, daqueles tempos de Guiné.
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* Velhos militares reformados, normalmente Legionários, que passavam o dia sentados no café com um jornal aberto, uma bica à frente - que invariávelmente não lhes era cobrada - e os ouvidos afinados para nada lhes escapar.
Os empregados do Café tinham ordens para que, a um pedido do “bufo”, o mudarem de mesa, para melhor captar as conversas de outros grupos.
Muitos destes “bufos” eram também os caça-multas às licenças de isqueiro, obrigatórias na época.
Esta aberração de licença - única no mundo - foi finalmente abolida por Marcelo Caetano, creio que em 1970.
** As queimadas de material credenciado, quando efectuadas em condições precárias de segurança, como no caso narrado, obedeciam a regras que nos eram ministradas durante o curso da especialidade.
1. Colocar ao fogo folhas soltas e amarfanhadas. NUNCA LIVROS sem ser desmembrados.
2. Após o final da queima, com uma pau reduzir a partículas mínimas todos os resíduos.
3. Despejar água suficiente para diluir, e se possível despejar em esgoto ou vala.
Curiosidade: Uma folha de livro direita, mesmo depois de queimada, se manuseada com cuidado, permite a leitura do texto!!??
*** As mensagens codificadas, saiam do Centro Cripto para o Centro de Msgs, que por sua vez seguiam para o Posto de Rádio para ser transmitidas aos diversos destinos.
Tanto as NT como as tropas do PAIGC utilizavam o chamado Alfabeto Fonético ou Internacional, que é inclusive utilizado pela aviação e marinha, militar e civil, em todo o mundo.
O que eles ouviam, pensando ser os tais SEGREDOS, não era mais que o Radio-telegrafista a transmitir as mensagens em “Fonético”.
“Os berros” eram uma necessidade premente pelas frequentes péssimas condições de escuta dos operadores, sempre com muitas interferências, devidas tanto às condições metereológicas, como por penetração dos operadores rádio do PAIGC nas nossas frequências!!
Simples...não?
José Justo
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