"O Natal da minha infância
Recordo que havia sempre muito frio, por vezes muita neve e,
invariavelmente, gelo que se acumulava nos beirais das casas e nos caminhos e
riachos. A igreja matriz era devidamente enfeitada para poder transmitir aos
fiéis uma onda de misticismo condicente com a época. Passava-se isto na aldeia
de Louriçal do Campo. Para quem não souber onde fica, eu ajudo. É na base da
serra da Gardunha, na vertente sul. Durante cerca de uma semana que antecedia o
dia de Natal, havia um grupo de rapazes mais velhos do que eu, juntamente com
homens que se voluntariavam para arrancar o cepo da maior árvore que houvesse
nas redondezes e carregá-lo para o adro da igreja a fim de, na véspera, se
poder fazer o braseiro que arderia durante vários dias até se extinguir ou a
chuva o apagar. Durante a fase em que ardia, era frequente ver rapazes, -
raparigas não, - a atiçar o lume ou aquecer pés e mãos, enquanto se divertiam.
Em casa, as mães já tinham feito as filhoses em quantidades muito grandes para
poder satisfazer a gula dos mais novos, competindo para fazer a maior quantidade.
Era tradição. Chegado o dia era a entrada solene na Igreja onde o padre muito
bem paramentado aguardava os fiéis enquanto se ouviam cânticos próprios da
época. Seguia-se o sermão onde se explicava a origem da tradição e o seu valor
religioso. Ao lado via-se o presépio sempre muito bem construído e enfeitado.
Ainda hoje dá gosto lembrar. No final era tradição beijar o pé do Menino. Filas
para esse acto. Finda a cerimónia era caminhar para casa para um almoço
diferente. Mas pouco, porque não se vivia com a fartura que há hoje. Após a
refeição, os mais novos brincavam com os presentes, quando os havia. Nesse
tempo, quem queria brinquedos tinha de fazê-los. Eu nunca chegava a entender
como o Menino Jesus nascia em família tão pobre e em dia tão frio para salvar
os homens e vinha a morrer três meses depois já com trinta e três anos. Era
muito pouco tempo para tanto mistério. Por vergonha nunca pedi que mo
explicassem. Talvez ainda hoje não entenda muito bem. Durante esta quadra, por
não haver escola, tinha mais tempo para brincar com os meus irmãos e fazíamos
grandes bonecos de neve que se mantinham por vários dias, até que a chuva ou o
sol os derretesse. As árvores estavam lindas, cobertas de neve, e algumas
partiam com o peso enquanto os ribeiros congelavam e o gelo se formava sob a
terra dos caminhos fazendo um ruído próprio quando pisado. Tudo tão diferente
do natal que comemorei no ano de 1968 em que, em Fulacunda, após uma ceia tão
agradável quanto possível, nos foi servido o filme “O Homem das Pistolas de Ouro”
e, cinco minutos após fomos servidos de um ataque que provocou um rasto de
morte, feridos e destruição. O filme continuou a correr em sala vazia até que
cortaram a energia e tudo parou.
Mais tarde tentei recriar o Natal da minha meninice para o
servir aos meus filhos. Já não era possível. Tudo tinha mudado. Hoje, resta a
saudade. Tenham um bom NATAL.
Joaquim Caldeira"
(dezº2010)
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