"COMO ERA BONITO O COMPASSO, EM DOMINGO DE PÁSCOA, NO MEU
VELHO BAIRRO DAS FURNAS
…Era pela manhã que se ouvia o som constante da sineta a
anunciar o compasso, acionado pelo Sr. José – o jardineiro -. Com uma opa
vermelha vestida.
…As casas, cujos donos as queriam ver abençoadas, tinham as
portas abertas, Era o sinal que era dado ao sacristão, para o sacerdote entrar.
Como era bonito o compasso (andamento), no domingo de
Pascoa, no meu velho Bairro das Furnas!
Era uma semana antes que começavam os preparativos do povo.
Os muros e as escadas das velhas casas de lusalite eram caiados. Os ripados dos
quintais, virados para a frente das estreitas ruas, eram arranjados e pintados
quanto bastasse. Aproveitava-se para podar as flores. Tudo que era restolho ou
lixo era retirado.
Ao tempo, todos primavam por vestir o que de melhor
conservavam. Aproveitando para estrear, nesse domingo, uma ou outra peça de
roupa quiçá, a custo, ao rol comprada. As janelas eram engalanadas com modestas
colchas e outras coberturas das camas, garridas por preferência. Os crentes,
tudo bem tratavam para receberem nas suas casas o Jesus pregado na cruz.
Era pela manhã que se ouvia o som constante da sineta, a
anunciar o compasso, acionada pelo Sr. José – o jardineiro - trazendo vestida
uma opa vermelha.
A atrás, de traje igual, - o sacristão -, o Sr. Cristóvão,
homem alto e de voz forte. Carregando na sua frente, de dimensão modesta, a
cruz com o Jesus pregado.
O padre vinha logo atrás acompanhado de 2 miúdos. Estes,
vestidos com trajes em acordo com a cerimónia. Um transportava o incensário, o
outro, transportava o balde da água benta, tendo dentro o espargidor.
O sacerdote apresentava-se de batina branca, com as mãos
escondidas pela estola, de cor verde, colocadas sobre a barriga.
Adultos e miúdos, estes, felizes e irrequietos, finalizavam
o cortejo.
As casas, cujos donos as queriam ver abençoadas, tinham as
portas abertas, Era o sinal que era dado ao sacristão, para o sacerdote entrar.
No seu interior, sobre a mesa, havia sempre um prato com
algum dinheiro, amêndoas ou um pequeno monte de bolachas.
Aleluia, Aleluia… dizia o padre. Estendendo a cruz para
permitir que o crente beijasse os pés do Senhor.
Aleluia, Aleluia… repetia o sacristão.
Seguia-se então a bênção, ao mesmo tempo que o seu ajudante
movimentava o incensário, purificando o lar com o incenso queimado, proveniente
de uma qualquer árvore aromática.
Por fim, o dinheiro era recolhido pelo padre. Na rua, as
amêndoas e as bolachas oferecidas, eram atiradas aos miúdos que, se empurravam
para as apanhar.
Nem todas as portas das casas se encontravam abertas a este
costume religioso, dando aso a criticas por alguma vizinhança:
…Olha aquele não é crente…
…Aqueles ali são contra a igreja…
E ainda outras
…Caramba, a porta abre-se a toda a gente…
…Olha aquele, não deixa a mulher e a filha beijar o Jesus…
Creio que uma boa parte das gentes que não abria as portas,
neste domingo de Páscoa, era fundamentalmente por vergonha da sua pobreza.
Estou convencido, por aquilo que assisti, que tais famílias
não tinham sequer dinheiro para comer, quanto mais para dar dinheiro e amêndoas
ao padre, que com elas, durante o ano nada repartia.
Assim era, o compasso no Domingo de Pascoa, no meu velho
Bairro das Furnas.
Raul Pica Sinos"
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