Ao longo das páginas dos XVI volumes do Diário (1941-1993)
tem Miguel Torga (1907-1995) espalhado um Cancioneiro de Natal. Não livro
temático deliberado, mas poemas/apontamentos reflexivos e sentimentais sobre a
data e o seu significado pessoal. Se em muitos poemas é a memória e o sentir
próprio que se reflectem, noutros é a leitura social do significado da crença,
o que encontramos.
Destes vinte e tal poemas explicitamente assinalados, e
espalhados ao longo dos últimos cinquenta anos da vida do poeta (do Natal de
1940 ao Natal de 1991), transcrevo a seguir cinco. Se o consolo da fé não surge
evocado, a esperança que a mitologia da data encerra nas suas múltiplas
possibilidades, está sempre presente, à mistura com a amargura de que o mundo
não seja o lugar de paz e harmonia que a cada nascimento se promete.
Loa
É nesta mesma lareira,
E aquecido ao mesmo lume,
Que confesso a minha inveja
De mortal
Sem remissão
Por esse dom natural,
Ou divina condição,
De renascer cada ano,
Nu, inocente e humano
Como a fé te imaginou,
Menino Jesus igual
Ao do Natal
Que passou.
S. Martinho da Anta, 24 de Dezembro de 1969.
Natal
Todos os anos, nesta data exacta,
Momentos antes
De fechar o cartório
De poeta
- Um registo civil ultra-real -,
O mago desse arquivo de presságios
Regista de antemão o mesmo nome
No seu livro de assentos:
- Jesus… - repete com melancolia,
A consumar a morte prematura
Do nascituro,
E a lamentar que a mãe, Virgem Maria,
Humana criatura,
Continue a ter filhos no futuro
Condenados à mesma desventura.
S. Martinho da Anta, 24 de Dezembro de 1973.
Natal
Soa a palavra nos sinos,
E que tropel nos sentidos,
Que vendaval de emoções!
Natal de quantos meninos
Em nudez foram paridos
Num presépio de ilusões.
Natal da fraternidade
Solenemente jurada
Num contraponto em surdina.
A imagem da humanidade
Terrenamente nevada
Dum halo de luz divina.
Natal do que prometeu,
Só bonito na lembrança.
Natal que aos poucos morreu
No coração da criança,
Porque a vida aconteceu
Sem nenhuma semelhança.
Coimbra, Natal de 1974.
Natal
Ninguém o viu nascer.
Mas todos acreditam
Que nasceu.
É um menino e é Deus.
Na Páscoa vai morrer, já homem,
Porque entretanto cresceu
E recebeu
A missão singular
De carregar a cruz da nossa redenção.
Agora, nos cueiros da imaginação,
Sorri apenas
A quem vem,
Enquanto a Mãe,
Também
Imaginada,
Com ele ao colo,
Se enternece
E enternece
Os corações,
Cúmplice do milagre, que acontece
Todos os anos e em todas as nações.
Coimbra, 25 de Dezembro de 1983.
Natal
Menino Jesus feliz
Que não cresceste
Nestes oitenta anos!
Que não tiveste
Os desenganos
Que eu tive
De ser homem,
E continuas criança
Nos meus versos
De saudade
Do presépio
Em que também nasci,
E onde me vejo sempre igual a ti.
Coimbra, 24 de Dezembro de 1988.
Poemas transcritos de Miguel Torga, Poesia Completa, 2
volumes, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 2007. Abre o artigo a imagem de uma
pintura de Master Francke, presumivelmente de 1424. Mestre Francke foi pintor
activo no norte da Alemanha nos primórdios do século XV, e de cuja vida e obra
hoje pouco se sabe.
In Vicio da Poesia
Mário Beja Santos”
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