Caros Companheiros
O Expresso publicou na semana passada, um interessante artigo sobre a Guiné-Bissau actual, com entrevistas aos intervenientes nativos, na guerra colonial, tanto do PAIGC como da nossa tropa.
É uma maneira de comemorar os 42 anos de independência (unilateral) do país e que vale a pena ler, tendo continuação nesta semana.
E Tite é uma das localidades referidas.
Estes artigos do Expresso, focam a Guiné na sua generalidade e por isso vale a pena lê-los.
com a devida vénia ao Jornal Expresso e ao jornalista Luis Pedro Nunes e Fotógrafo Alfredo Cunha.
De todos os relatos
gravados e lidos, nunca se percebe qual foi a acendalha que levou ao primeiro
tiro
PRIMEIRO
TIRO DE GUERRA, FOI UMA LANÇA!
23 DE
JANEIRO DE 1963, QUARTEL DE TITE
É difícil explicar a geografia da Guiné a quem nunca
lá foi. Afinal “aquilo tem o tamanho do Alentejo” . Mas é um engano. Todo o
litoral é uma planície pantanosa que se abre à foz de vários rios. O que quer
dizer que para descer o equivalente a 30 quilómetros em linha reta, teremos
que utilizar um barco ou dar voltas por terra horas sem fim a contornar a
boca de várias entradas de rios. E há o terreno de lama. A vegetação. O clima
tropical. As chuvas. Os mosquitos. No início dos anos 60, a Guiné não era como
as joias da Coroa: Angola e Moçambique. Para o meio milhão de autóctones de
dezenas de etnias, havia uns meros dois mil portugueses da Metrópole. Alguns
deles militares, espalhados por quartéis nos principais pontos do país. A zona
sul, que faz fronteira com Conacri, terrível em termos de geografia, e que
seria comandada por Nino Vieira, iria ser o ponto de partida da guerra na
Guiné. Tite, um quartel da tropa portuguesa, foi escolhido para a primeira
investida noturna do PAIGC. É conhecido por ser o local do primeiro tiro. E
ainda se comemora como tal. É uma data.
O quartel português de Tite ainda lá está. Mas em
escombros. Restam as paredes e como sempre o mato vem reclamar o que lhe
pertence. Ainda foi ocupado pela tropa guineense, mas abandonado em 1994. A
poucos metros, impassível, está um poilão, uma magnífica árvore sagrada com
dezenas de metros de altura. À sua sombra, os velhos. E, com eles, a memória.
Logo ali dois que lutaram no exército português. Pedro Ussumani, 66 anos; e
Brema Jasse, 73. Foram tropa feijão-verde. Brema, aliás, passou de soldado
‘tuga’ a coordenador do PAIGC, e fala desses tempos com cumplicidades e
risadas. “Querem um terrorista? Vamos a casa do grande bazuqueiro. e lá
caminhamos umas dezenas de metros ate à casa de Brame Sane, 63 anos, o tal
artista da bazuca. Tudo amigo. “Fomos soldados, não há rancores", diz.
Ussumani vai adiantando “que depois tas descolonizações há sempre uns
exageros”. Mas a questão não era entre guineenses, era da política de Salazar.
Gostava de acabar nesta frase. Não posso . Da mesma maneira que entre os
jovens não há grande ligação com o poder colonial, há um saudosismo verbalizado
sem medo na geração mais velha. Até em combatentes da libertação. Um cansaço da
instabilidade. Da destruição. Da pobreza. Mais do que do resto. O que confunde.
E ouve-se isto. “Se era para ficar assim, sem nada, com este braço sem força
devido aos estilhaços, não tinha ido combater'. diz o bazuqueiro do PAIGC.
E o tal primeiro tiro, como foi? O homem que o deu
morreu há poucos meses. E eis que chega à sombra do poilão Pape Dabo, 89 anos,
um homem pequenino. Não sabe de ouvir dizer. Esteve presente no ataque de 23 de
janeiro de 1963 e participou nas reuniões que decidiram a operação no quartel
de Tite. Tiro? Não foi tiro. “Só tínhamos dez armas e a sentinela estava a
dormir e, quando avançámos pela porta do quartel, matámos o homem com um
canhaco. ” Canhaco? É uma lança que se põe num arco. Mas foi com a mão.
Perfurou-lhe o pescoço.
Mas voltemos um pouco
atrás. Pape Dabo conta a história do ataque como já a terá repetido centenas de
vezes. Não permite interrupções. Ele é o narrador e o dono da versão. Começa
com ele e o irmão no quartel, a trabalharem como padeiros dos portugueses, e
termina depois do ataque com ele a voltar a ser reconhecido pelos militares
portugueses como um “dos bons” e, assim, a poder espiar. Pelo meio, o ataque:
divididos em quatro grupos, só primeiro entra no quartel; os portugueses acorriam;
os tiros; as mortes do lado dos ‘tugas’ terroristas ( “terroristas eram vocês
do PAIGC”, diz Pedro); depois, teve que voltar no outro dia, foi obrigado a ver
os cadáveres dos companheiros mortos e ter de fingir que não os conhecia. E
recorda ainda quando o comandante alinhou a população na praça em frente ao
quartel e disse: “A guerra começou.”
Jornalista - Luis Pedro Nunes
Fotografias - Alfredo Cunha
Jonal Expresso - 19/09/2015
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A este respeito, voltamos a publicar aqui, algumas das fotos tiradas ao actual estado do quartel de Tite, numa visita que o Raul Soares (na foto) fez recentemente àquelas paragens.
A fotografia do poilão, tirada pelo Raul Soares
nota - na próxima semana contamos publicar uma reportagem dos mesmos autores e que foca a Operação militar "Mar Verde", que libertou os nossos companheiros que na altura se encontravam presos em Conakri. Este relato tem a participação de elementos do IN que participaram na operação.