MEMÓRIAS DO JOSÉ JUSTO, ESCRITAS PELO PRÓPRIO EM 2009:
"Intróito:
Por alusão de um grande amigo e ex-companheiro de armas, a
um seu Diário escrito na Guerra da Guiné nos anos 60, e que no regresso à
Metrópole, após dois anos de comissão, num rompante, decidiu larga-lo borda
fora do navio UIGE, lembrei que também eu tinha feito uma “ameaça de Diário”
exactamente na mesma época e local.
Muito procurei e lá o descobri nos recônditos de montes de
papelada e livros...
Eis umas breves notas explicativas.
Ficou pelo caminho esta tentativa de fazer um “Diário de
Guerra” na Guiné...começou tarde e terminou cedo !!
Estes textos não tem o mínimo de pretensões literárias, nem
grandes “desanrincanços” de prosa, nem muita qualidade...mas são sinceros,
porque foram vividos intensamente e escritos com o coração !!
Estão bastante espaçados no tempo, porque não havia grande
paciência para a escrita, nem disso eu era muito amante.
Foram passados ao papel em ambiente de guerra, no quartel de
Tite, sempre nas madrugadas daquelas longas noites e com pouco mais de vinte
anos.
Até para casa e família, as minhas cartas eram escassas e
lacónicas.
Anos mais tarde, disso bastante me penitenciei, pois a ausência de noticias muito fazia sofrer meus
pais.
Sempre me exprimi com algum sucesso, por palavras e
“bonecos”.
Ao invés, confesso a falta de jeito com a pena, para narrar
no papel a catadupa e turbilhão dos meus pensamentos.
Não inclui relatos pormenorizados dos ataques do PAIGC que
sofremos, tendo-o no entanto feito em folhas de papel, com o intuito de mais
tarde os incluir num capítulo em separado “Ataques ao Quartel”
Infelizmente esses manuscritos levaram sumiço, o que é pena,
pois continham descrições pormenorizadas, medonhas e sofridas, com número de
mortos e feridos, estragos materiais etc., dos maiores ataques efectuados
durante dois anos.
Ao meu rigoroso e saudoso pai, que muito me ajudou e com
quem bastante “conflituava” naqueles tenros anos, a minha grata recordação.
Só mais adulto, o comecei a compreender e verdadeiramente a
amar.
Muito me apoiou sobre todos os aspectos, neste amargo
período da minha vida.
Ele sabia dar valor ao que eram as saudades e o ambiente de
guerra, pois como furriel miliciano de engenharia, tinha nos anos 38-40, também
passado pela Guiné e feito comissão na Ilha do Sal, Cabo Verde.
Sempre o vi, até à sua doença e ausência física, como um
líder, sempre a estudar e elevar-se profissionalmente.
Involuntariamente e com tristeza, cedo admiti, lhe ter dado
vários desgostos.
O seu grande sonho de ver os filhos Dê Rés; o “assentar”,
casar e constituir família; depois de casado, o não querer ter logo filhos; o
sair de casa pouco tempo após o regresso da Guiné; o nunca acabar o curso de
programador no Centro Informático da RTP que ele chefiava, ficando-me pelo de
Mecanógrafo, entre outras avarias pós Guiné, n’uns loucos anos, em que vivia
como se fosse o último dia – noite, melhor dizendo - da minha vida.
Mesmo assim, foi esse curso informático, que me proporcionou
o primeiro emprego a sério pós Guiné, e onde curiosamente me metia com uma
colega que não podia comigo nem um bocadinho, que tinha uns olhos lindos, e que
infelizmente para ela, acabou por comigo casar e piedosamente me aturar com
“pachorra” de santa há... 37 anos.
37 anos que me parecem 37 dias !!...Gosto mais dela do que
torradinhas do meio !!
Ainda sobre o pai: Todos sabemos e facilmente se adivinha o
que seria naquele tempo e condições, a alimentação da “soldadesca”.
Quando em comissão no Ultramar, era-mos obrigados a deixar
cerca de metade do vencimento a um familiar na Metrópole, recebendo na zona
operacional o restante.
Como não conseguia tragar a comida do quartel, passava o
tempo a “lutar pela vida” ora comendo no “Branco” ora alinhando nos petiscos
que os camaradas arranjavam.
Claro que isso trazia custos acumulados, e como o que
recebia não chegava, passava a vida a pedir ao pai para me enviar a “pensão” de
que ele era fiel depositário. O dinheiro
da Metrópole tinha uma mais valia, pois “cambiávamos” por mais 10% em “patacão” da Guiné.
Esgotei a pensão, mas ele nunca falhava com o apoio
monetário, dizendo que lhe pagaria quando findo o tormento, já em “casa”,
tivesse a vida organizada e começasse a trabalhar.
Quando finalmente me vi regressado à casa paterna, com que
alegria ele me dava as novidades....
A primeira refeição foi frango assado picante com bata frita
às rodelas e esparregado salteado com alho (que eu adorava), depois o nosso
quarto remodelado, nova televisão, obras na nova casa...tudo preparado para a
recepção do” filho pródigo”.
Por último - surpresa maior - a papelada para abrir uma
conta bancária com todo o dinheiro da pensão de dois anos, que supostamente me
teria enviado para a Guiné, mais uma verba que ele dizia ser de “juros do
capital investido” !!
Fiquei espantado !!
Nunca mais esquecerei deste gesto. Muitos outros de grande generosidade se
seguiram pelos largos anos que ainda viveu.
A minha singela homenagem, ao grande homem que me vincou o
carácter e do qual muito herdei.
JJ – Maio 2009"