terça-feira, 1 de março de 2022

José Justo - 16 de julho de 1968, o diário


16 de Julho de 1968.................3 horas da manhã, no Centro Cripto                                                                           pág. 7 de 7

Ataque !!...Ataque !!...Ataque !!

Só esta medonha palavra tem de momento significado.

É ela que me vai corroendo a mente e o corpo...me faz definhar e morrer um pouco a cada dia que passa.

Não sei até que ponto posso chegar.

Até que altura continuo a suportar toda esta merda de vida, de incertezas de medos...cada vez como e durmo menos...cada vez bebo mais...

Se não fosse a responsabilidade do serviço, e ter que manter para o mesmo a cabeça e os sentidos sempre alerta, apanhava uma bebedeira que durasse toda a comissão...porra estou farto desta merda toda...

A continuação é impossível...penso já não mais conseguir transcrever o que sinto e me vai corroendo a alma....TERMINEI !!

Talvez um dia volte a abrir estas páginas.......ainda me faltam nove ou dez meses desta agonia lenta, uma eternidade de tempo...nunca mais vejo a minha querida Lisboa. 

Que saudades de sentir outros odores...outras cores...aquelas fabulosas e lindas mulheres de mini-saia (abençoada Mary Quant), que tanto embelezam a minha terra.

Sim eu tenho um bairro onde nasci e uma terra minha...chamam-se: BA, Bairro Alto e Lisboa, não é nestes tons, nem com estes odores. 

As pessoas não são desta cor...Não se vestem nem falam assim...Não se alimentam nem enterram os seus mortos assim...Não se olham como aqui...Não bebem, o que bebem aqui...não comem com as mãos...

Não nos sentimos estranhos, como aqui...Não se manifestam, como aqui...Não moram em casas como as de aqui...Comem legumes e frutas e carne com tamanhos normais, não como aqui, onde tudo é pequeno e raquítico...Não veneram o Deus d’aqui...nem andam cheios de mézinhas e “roncos”...

Não andam sempre de chinelos...Não cheiram como aqui...Falamos todos a mesma língua, com várias pronúncias que só a embelezam...Somos uma só raça, não como aqui...Posso amar muitas vezes, com quem, quando e onde me apetecer, aqui não...

Não queremos correr com os vizinhos, como nos querem correr daqui...Podemos acreditar que quando nos sorriem, é mesmo por satisfação e não por obrigação ou medo...Não alimentamos e apoiamos por grandes e egoístas interesses comercias, inconfessáveis e sorrateiramente, quem vai decerto matar um seu irmão amanhã, irmão esse, que ali está a milhares de quilómetros de casa, longe dos seus, passando privações, para o defender a  ele e aos seus interesses...

Não tenho, quando o sol entra no ocaso, ter de me enfiar em buracos debaixo de terra para me proteger de bombas...Não tenho que andar meio grogue com cerveja e ir alta madrugada para a cama, para não pensar nos medos em que vivo, como aqui...

Não tenho que receber ordens, sem ser de quem para isso me pagar, como aqui...Aturar tanta gente desinteressante e básica, como aqui...Andar de farda, como aqui...

Ter que fazer continências, que dizem ser um cumprimento, mas eu só cumprimento quem quero e de quem gosto, não como aqui...Não tenho que ver homens de vinte anos a comer mal, morrer, ficar em pedaços e meio loucos todos os dias, como aqui...Andar, correr e saltar sem estar rodeado de arame farpado...Dormir sem uma arma à cabeceira e granadas debaixo da cama...PORRA na minha Lisboa não é nada como aqui...

Que estou eu aqui a fazer com uma arma na mão ??!!

Na minha terra ninguém me obriga a lá estar...vivo nela e amo-a porque quero...porque gosto de tudo que ela contém e representa...mesmo do mau, por vezes gosto !!

Até um dia....se voltar a haver um dia.... 

JJ Op. Cripto     Tite – Guiné 1967-69

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