segunda-feira, 23 de janeiro de 2023

O dia em que a guerra colonial começou na Guiné, em Tite

Transcrevemos mais uma vez, um artigo do Expresso, e do seu repórter Alfredo Cunha, a quem agradecemos, sobre a Guerra Colonial :

23 DE JANEIRO DE 1963, QUARTEL DE TITE

É difícil explicar a geografia da Guiné a quem nunca lá foi. Afinal “aquilo tem o tamanho do Alentejo”. Mas é um engano. Todo o litoral é uma planície pantanosa que se abre à foz de vários rios. O que quer dizer que para descer o equivalente a 30 quilómetros em linha reta, teremos que utilizar um barco ou dar voltas por terra horas sem fim a contornar a boca de várias entradas de rios. E há o terreno de lama. A vegetação. O clima tropical. As chuvas. Os mosquitos. No início dos anos 60, a Guiné não era como as jóias da Coroa: Angola e Moçambique. Para o meio milhão de autóctones de dezenas de etnias, havia uns meros dois mil portugueses da Metrópole. Alguns deles militares, espalhados por quartéis nos principais pontos do país. A zona sul, que faz fronteira com Conacri, terrível em termos de geografia, e que seria comandada por Nino Vieira, iria ser o ponto de partida da guerra na Guiné. Tite, um quartel da tropa portuguesa, foi escolhido para a primeira investida noturna do PAIGC. É conhecido por ser o local do primeiro tiro. E ainda se comemora como tal. É uma data.


O quartel português de Tite ainda lá está. Mas em escombros. Restam as paredes e como sempre o mato vem reclamar o que lhe pertence. Ainda foi ocupado pela tropa guineense, mas abandonado em 1994. A poucos metros, impassível, está um poilão, uma magnífica árvore sagrada com dezenas de metros de altura. À sua sombra, os velhos. E, com eles, a memória. Logo ali dois que lutaram no exército português. Pedro Ussumani, 66 anos; e Brema Jasse, 73. Foram tropa feijão-verde. Brema, aliás, passou de soldado ‘tuga’ a coordenador do PAIGC, e fala desses tempos com cumplicidades e risadas. “Querem um terrorista? Vamos a casa do grande bazuqueiro”, e lá caminhamos umas dezenas de metros até à casa de Braine Sane, 63 anos, o tal artista da bazuca. Tudo amigo. “Fomos soldados, não há rancores”, diz.

Ussumani vai adiantando “que depois das descolonizações há sempre uns exageros”. Mas a questão não era entre guineenses, era da política de Salazar. Gostava de acabar nesta frase. Não posso. Da mesma maneira que entre os jovens não há grande ligação com o poder colonial, há um saudosismo verbalizado sem medo na geração mais velha. Até em combatentes da libertação. Um cansaço da instabilidade. Da destruição. Da pobreza. Mais do que do resto. O que confunde. E ouve-se isto. “Se era para ficar assim, sem nada, com este braço sem força devido aos estilhaços, não tinha ido combater”, diz o bazuqueiro do PAIGC.

E o tal primeiro tiro, como foi? O homem que o deu morreu há poucos meses. E eis que chega à sombra do poilão Pape Dabo, 89 anos, um homem pequenino. Não sabe de ouvir dizer. Esteve presente no ataque de 23 de janeiro de 1963 e participou nas reuniões que decidiram a operação no quartel de Tite. Tiro? Não foi tiro. “Só tínhamos dez armas e a sentinela estava a dormir e, quando avançámos pela porta do quartel, matámos o homem com um canhaco.” Canhaco? É uma lança que se põe num arco. Mas foi com a mão. Perfurou-lhe o pescoço.

Ussumani vai adiantando “que depois das descolonizações há sempre uns exageros”. Mas a questão não era entre guineenses, era da política de Salazar. Gostava de acabar nesta frase. Não posso. Da mesma maneira que entre os jovens não há grande ligação com o poder colonial, há um saudosismo verbalizado sem medo na geração mais velha. Até em combatentes da libertação. Um cansaço da instabilidade. Da destruição. Da pobreza. Mais do que do resto. O que confunde. E ouve-se isto. “Se era para ficar assim, sem nada, com este braço sem força devido aos estilhaços, não tinha ido combater”, diz o bazuqueiro do PAIGC.

Mas voltemos um pouco atrás. Pape Dabo conta a história do ataque como já a terá repetido centenas de vezes. Não permite interrupções. Ele é o narrador e o dono da versão. Começa com ele e o irmão no quartel, a trabalharem como padeiros dos portugueses, e termina depois do ataque com ele a voltar a ser reconhecido pelos militares portugueses como um “dos bons” e, assim, a poder espiar. Pelo meio, o ataque: divididos em quatro grupos, só o primeiro entra no quartel; os portugueses acordam; os tiros; as mortes do lado dos ‘tugas’ terroristas (“terroristas eram vocês do PAIGC”, diz Pedro); depois, teve que voltar no outro dia, foi obrigado a ver os cadáver dos companheiros mortos e ter de fingir que não os conhecia. E recorda ainda quando o comandante alinhou a população na praça em frente ao quartel e disse:

 “A guerra começou.”

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