sábado, 3 de julho de 2021

Visões do Império


 “A pergunta confronta e exige resposta: “A bandeira é a roupa de um país?” A interrogação é do escritor moçambicano Mia Couto e faz parte do texto que acompanha uma imagem de autor não identificado, que retrata uma bandeira portuguesa dobrada entre mais material capturado pelo PAIGC (Partido Africano para a Independência da Guiné e de Cabo Verde) ao exército Português.

A pergunta questiona o visitante da exposição “Visões do Império”, patente até 30 de dezembro no Padrão dos Descobrimentos, em Lisboa. As pistas para a resposta estão todas lá: no título no plural, na primeira fotografia da exposição — um negro por trás de uma máquina fotográfica, do fotógrafo moçambicano Sebastião Langa —, no livreto que ajuda a perceber o percurso, com imagens contrastantes de vários pontos de vista, e nos textos de vários autores com diferentes perspetivas do império português.

“A fotografia foi um elemento fundamental da história do moderno colonialismo português.

Sem ela, a idealização e o conhecimento sobre os territórios coloniais, seus recursos e populações, teriam sido diferentes. As imagens fotográficas  foram encenadas e comercializadas, com diferentes propósitos”, pode ler-se no texto de abertura.

Um aviso a partir do qual fica claro ao visitante que o que vai ver não pode ser o resultado de um passeio despreocupado, mas vai exigir esforço de observação e interpretação para que seja possível apreender o que lá está plasmado e o muito que fica de fora.

São imagens de “sonhos e memórias individuais e coletivos” que “alimentaram a dominação colonial”, escrevem os curadores, Miguel Jerónimo, historiador, e a realizadora Joana Pontes. Sublinhando o papel instrumental da fotografia, explicam que foi através da construção do imaginário do Outro, no espaço colonial, que se sustentaram “leis e práticas de discriminação política, social, económica e cultural, desenhadas ao longo de linhas raciais”. Ou seja, a exposição que não pretende ser um manifesto, o é claramente. E, num momento em que vários países se confrontam com o passado de colonizador ou de colonizado, a exposição inaugurada a 15 de julho mantém uma tal riqueza de imagens que se torna quase obrigatório passar pelo Padrão dos Descobrimentos.

Mas de tal forma está construída, respeitando a lógica do contraditório, que sempre outras

fotografias estão expostas de forma a servir para “denunciar a iniquidade e a violência da colonização, acalentando aspirações de um futuro mais humano e igualitário”. “Visões do Império” é uma exposição que funciona como um espelho e o seu avesso e, mais do que apenas as imagens fixadas, o que realmente interessa são “os contextos de produção e de uso da fotografia”, resultando quase num manual de interpretação.

“O que é preciso é que seja um debate informado”, alertam os curadores.

Ao Expresso, Miguel Jerónimo explica que foram tantas as imagens vistas para proceder à seleção que deu origem a “Visões do Império” que é impossível contabilizá-las, mais um sinal de que vendo, fica sempre muito por ver. Feita a escolha, Joana Pontes faz questão de sublinhar que “o objetivo da mostra não era criticar o modelo colonialista adotado por Portugal”, até porque ambos discordam da forma “polarizada e moral” como o debate tem sido travado. O que é urgente é informar, dizem. “Esta exposição tenta mostrar que é possível pensar para lá da acusação ou da colaboração. Não houve o filtro da crítica, mas a intenção de mostrar a diversidade de pontos de vista das fotografias e os usos que esta teve”, desenvolve a realizadora.

DO FILME À FOTOGRAFIA Tudo começou com um documentário de Joana Pontes sobre a guerra colonial estreado no ano passado no Festival DocLisboa. Tantas foram as imagens que lhe passaram pelas mãos que se tornou incontornável desenvolver o projeto. “Há milhões

de fotografias do império espalhadas pelos locais mais imprevisíveis, um mundo verdadeiramente gigantesco e que os portugueses ainda não conhecem”, alerta. Desta constatação foi um passo até ao convite feito a Miguel Jerónimo.

No fim, a certeza de que cada fotografia exposta permitiria desenvolver uma história, mesmo

que muitas não tenham a autoria devidamente identificada.

Tudo foi minuciosamente pensado. “Quisemos reconhecer a nossa incapacidade de mostrar como o outro documentou a colonização, por isso escolhemos como primeira a imagem de um fotógrafo negro. O olhar do colonizador sempre prevaleceu e tentámos equilibrar esta situação”, afirma Miguel Jerónimo. Para Joana Pontes, outra surpresa que a exposição lhe trouxe são as imagens de famílias de colonos portugueses pobres em África. “É a história

que nunca se contou dos portugueses pobres, dos brancos pobres, que ficaram sempre pobres. É uma imagem que nos obriga a pensar na enorme responsabilidade de se enviarem aquelas pessoas para o trabalho agrícola num local que desconheciam completamente”, conclui.

Abrigadas no monumento criado para enaltecer os Descobrimentos portugueses, as fotografias, cedidas por várias coleções públicas e privadas, nacionais e estrangeiras, permanecerá patente até 30 de dezembro. Muitas foram fruto da pesquisa em instituições

como o Arquivo Histórico Ultramarino, Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Biblioteca

Nacional, Arquivo da Universidade de Coimbra, da Liga dos Combatentes, do Santuário de Fátima, ou do Centro de Documentação e Formação Fotográfica, de Maputo, assim como da Fundação Mário Soares/Maria Barroso, Arquivo & Museu da Resistência Timorense, Arquivo Histórico de São Tomé e Príncipe. Mas há surpresas inéditas, como fotografias enviadas por soldados da Guerra Colonial ou ainda de missionários protestantes.

Ao longo das salas, os contextos sucedem-se, refletindo os múltiplos cenários e usos da fotografia: ciência, documentação antropológica, a “civilização” que chega ao outro mundo e que diz ter a missão de o pacificar, o trabalho forçado, a educação e a evangelização, sob o título “oficinas da alma”, a povoação e o reordenamento destas fronteiras esticadas, a promoção do desenvolvimento à imagem da metrópole, a religião e a arte exportadas. E “as guerras”, em que mais uma vez a utilização do plural não é uma opção inocente dos curadores.

No fim, surge uma instalação com imagens que emergiram do chão (negativos encontrados entre os paralelepípedos da Feira da Ladra) dos rostos de uma “não-Nação”, construída pelo artista ARQUIVO HISTÓRICO ULTRAMARINO

A exposição tenta mostrar que é possível pensar para lá da acusação ou da colaboração. Sem o filtro da crítica, mas com a intenção de mostrar a diversidade de pontos de vista “Apoteose”. Viagem do Ministro das Colónias à Guiné (1935), foto de Elmano Cunha e Costa

visual Romaric Tisserand, a que se juntaram textos da ativista Myriam Taylor.

A partir de setembro estará disponível um catálogo da exposição, com textos desenvolvidos, e,

até lá, o documentário que lhe deu origem será exibido no Cinema Ideal, em Lisboa, a 15 de julho, três dias mais tarde no Trindade, no Porto, e a 19 de julho volta a Lisboa, para o City Alvalade. Mas,antes de sair do Padrão, mais uma frase de Mia Couto fica a soar: “O que por um instante é fingimento, no minuto seguinte se converte na mais cruel realidade.”

camartins@expresso.impresa.pt

Jornal Expresso- 

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