"Numa corrida de cerca de vinte quilómetros feitos de
táxi até ao “24 de Setembro”, o nosso hotel, o meu sócio pôde sentir o bafo de
África. O sol a pique, uns amenos trinta graus e a humidade na casa dos cem por
cento, tiram o alento a qualquer branquelas que por ali se atreva. O trânsito é
infernal e pauta-se por regras de algum código não aplicáveis noutro
continente. Não descortino porque é que em Portugal não se faz a troca
automática de uma carta de condução guineense por uma nacional. Quem consegue
mexer-se naquele caos, está apto a conduzir em qualquer parte do mundo. Ali,
vale tudo, menos colidir. O que só não acontece mais vezes graças aos bons
espíritos. Mas quando a batidela acontece, é a vítima que sai do carro, pede
desculpa ao atrevido que lhe amolgou o guarda lamas e convida-o a seguir
viagem!
Para meter conversa e saber as últimas da politiquice
doméstica, instalo-me ao lado do condutor do velho Mercedes 200 pintado a azul
e branco. Marca e modelo dominam o mundo dos carros de aluguer na cidade,
condenados à canibalização logo que deixam de estar aptos ao serviço.
Sinto a camisa numa sopa, colada às costas do assento.
Através do vidro aberto, o meu camarada vai sorvendo o cheiro de África e da
cachaça de caju, transportado em lufadas de ar quente e muito pó. Para mim,
esta curta viagem é sempre uma romagem de saudade. Brá, depósito de adidos,
quartel dos comandos, antigo aeroporto e base aérea, o hospital militar …
quantas recordações para os milhares e milhares de jovens que, tal com eu,
cumpriram uma parte do serviço militar naquele território.
A chegada ao Bandim marca a entrada na cidade de Bissau. É
um mercado de rua, ao ar livre portanto, onde tudo se vende, onde tudo se pode
comprar. Frutas, legumes e cereais, carne e peixe com e sem moscas, mobílias e
electrodomésticos, ouro, prata, jóias e moeda estrangeira, vestuário, calçado e
material escolar, artigos a preços simpáticos para a carteira do cliente, pobre
na maioria das vezes. A sua ala principal ocupa várias centenas de metros ao
longo da artéria que liga a capital ao aeroporto. Do lado poente, ficam os
bastidores deste grande mercado equivalente ao Roque Santeiro de Luanda,
constituídos por um labirinto de ruas e ruelas invariavelmente sujas e
malcheirosas, onde se apertam como sardinhas em lata, representantes das
quarenta e tal etnias do país. As mulheres são o retrato de África, terra-mãe
da humanidade. Trajando as cores do arco íris, exprimem-se nas línguas de
Babel. Carregam o essencial para alimentar a família e muitas transportam vida
nova no ventre, às costas ou pela mão. Pode dizer-se que no Bandim pulsa o
coração do povo guineense.
Dentro da cidade, ruas largas embora em mau estado,
bordejadas a mangueiras, deixam fluir um trânsito menos caótico permitindo-nos
chegar ao Hotel sem dificuldade. Na recepção, um staff primoroso auxilia nas
formalidades e encaminha-nos até aos alojamentos. Estes são constituídos pelo
que resta de um vasto complexo de edifícios de apoio ao antigo clube de
oficiais, uma espécie de barracões cobertos a lusalite e ventilação natural,
onde se acomodava o pessoal de passagem. Eram tão medonhamente quentes e
desconfortáveis que os residentes temporários lhes chamavam ”o Biafra”. Hoje,
depois de algumas obras de remodelação, oferecem aceitável nível de conforto
tendo em conta os padrões do país. Impera o nacionalíssimo banho balanta de
púcaro e alguidar, suprindo as falhas de água na torneira. Pelas paredes acima
a necessitarem de rolo e tinta, bicharada exótica dá as boas vindas aos
recém-chegados. Móveis desconjuntados e o ar condicionado cheio de ressonâncias
e a debitar calorias, completam um quadro indubitavelmente tétrico para o
turista, familiar e aconchegante para o viajante, amante destas paragens.
Depois de uma borrifadela rápida para retirar o salitre do
suor agarrado à pele, desfazem-se as malas à procura da vestimenta adequada,
roupas leves de algodão, calções, T shirt e sandálias. Em poucos minutos
estamos a caminho de Quinhamel na região do Biombo, a cerca de 40 Km de Bissau.
O nosso destino é o restaurante da D. Henriqueta e seu marido, o Ti Aníbal. Um
barraco situado na margem de uma bolanha, rodeado de frondosas e centenárias
mangueiras sob as quais se alinham mesas e bancos corridos, este é o melhor
local para saborear as deliciosas e fresquíssimas ostras da bolanha. Passadas
pela chapa quente e servidas em quantidade industrial, são uma entrada forte
para o menu que se segue; peitos de rola e bifinhos de gazela grelhados aux
épices. A noite termina em beleza com uns drinques na Baiana, no centro da
cidade, e uma visita a um dancing bem frequentado!
Fim da primeira parte e conclusão: Não é preciso muito para
um homem ser feliz. Já as mulheres , não sei...
Juan"
Interessante, sem dúvida. Como gostaria de ir à zona do Biombo, por exemplo! Quarenta quilómetros, para cá e para lá. O que mais impressiona e cativa é o lado desimpedido da Guiné sem guerra. Sobrevoei uma vez o Biombo, a caminho da ilha Caravela, onde um helicóptero foi recolher camaradas que ali tiveram de ficar, por a rebentação não deixar o «Zebro» ir buscá-los à praia. Vi, então, de cima, as casas construídas ligadas umas às outras formando como um caracol ou começo de espiral. Vim a saber que isto teve origem na necessidade de defesa contra os ataques dos Bijagós em tempos passados.
ResponderEliminarO que vi foi mesmo na Ponta Biombo, que fica aproximadamente no alinhamento Bissau-Caravela.
Gostei de ler este texto. Depois do que li, penso: sobrará alguma coisa das casas que vi?
Aproveitei para lembrar a minha viagem de 1970.
o-ceu-dos-bijagos.html
http://novoestaleiro.blogspot.com/2016/07/as-casas-da-ponta-biombo.html
Ficou errado o primeiro endereço: http://novoestaleiro.blogspot.com/2016/07/o-ceu-dos-bijagos.html
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